Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

da teoria tomassem forma nas fantasias deles. Um ar juvenilmente irônico,
desdenhoso, servia para remover de suas consciências o que, afinal, era o
aspecto que sobressaía na doutrina deles. Os militantes de base sabiam de tudo
isso e, assim como compartilhavam com os membros do comitê diretor riscos e
necessidades, assim também compreendiam o espírito deles; e no entanto
conservavam o significado obscuro desse destino de justiceiros, a ser exercido
não só sobre os poderes constituídos mas também sobre os poderes futuros. Não
podendo expressá-lo de outra maneira, ostentavam nas assembleias uma atitude
insolente, que, mesmo se limitando a um modo formal de comportamento, não
deixava de pairar sobre os chefes como uma ameaça.
— Enquanto o inimigo a enfrentar for o czar — dissera Virghilij Ossipovitch
—, é louco quem procura o czar no seu companheiro — afirmação talvez
inoportuna, e sem dúvida mal recebida pela assembleia ruidosa.
Virghilij sentiu a mão de alguém apertando a sua; sentada no chão, a seus
pés, estava Evguenija Ephraïmovna, os joelhos encolhidos debaixo da saia
pregueada, os cabelos presos na nuca e caindo dos dois lados do rosto como os
fios de um novelo fulvo. Uma das mãos de Evguenija subira pelas botas de
Virghilij até encontrar a mão do jovem, de punho cerrado, roçara seu dorso
numa carícia de consolo e depois cravara suas unhas pontudas, arranhando-o
lentamente até sair sangue. Virghilij compreendeu que, naquele dia, circulava
pela assembleia uma determinação obstinada e precisa, algo que dizia respeito
diretamente a eles, os dirigentes, e que se revelaria dali a pouco.
— Nenhum de nós jamais esquece, companheiros — interveio para acalmar
os ânimos Ignatij Apollonovitch, o mais antigo do comitê e considerado o
espírito mais conciliador —, aquilo que não deve esquecer... Seja como for, é
justo que vocês nos recordem isso, de vez em quando... se bem que —
acrescentou, debochando com sua barba — o conde Galitzin e os cascos de seus
cavalos já pensem suficientemente em nos recordar... — Fazia alusão ao
comandante da guarda imperial que, com uma carga de cavalaria, tinha
recentemente destroçado um de seus cortejos de protesto, na ponte do
Picadeiro.
Uma voz, sabe-se lá de onde, o interrompeu:
— Idealista! — e Ignatij Apollonovitch perdeu o fio. — E por quê? —
perguntou, desconcertado.
— Acha que basta guardar na memória as palavras da nossa doutrina? —
disse, do outro canto da sala, um magricela que se fizera notar entre os mais
agitados dos últimos convocados. — Sabe por que a nossa doutrina não pode ser
confundida com as de todos os outros movimentos?
— Claro que sabemos. Porque é a única doutrina que, quando tiver
conquistado o poder, não poderá ser corrompida pelo poder! — resmungou,
inclinada sobre os papéis, a cabeça raspada de Femja, que entre eles era o

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