Aventuras na História - Edição 195 (2019-08)

(Antfer) #1

O DESEJO E O REAL


AS OPINIÕES DOS COLUNISTAS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DA REVISTA


ALEXANDRE CARVALHO É JORNALISTA E CRIOU, EM 2005, A REVISTA DE CINEMA PAISÀ. É AUTOR DOS LIVROS
INVEJA – COMO ELA MUDOU A HISTÓRIA DO MUNDO (2015) E FREUD – PARA ENTENDER DE UMA VEZ (2017)

E


m outubro de 1966, Elisa Moreira Salles, então
com 37 anos, visitava a China com um grupo
de ricaços, industriais e banqueiros. A esposa
do dono do Unibanco fez filmes amadores da viagem,
registrando os sorrisos dos amigos na Grande Mu-
ralha, mas também um lirismo que não imaginava
encontrar. Em pleno alvorecer da Revolução Cultu-
ral Chinesa, quando a Guarda Vermelha perpetrava
as maiores violências contra intelectuais e supostos
opositores de Mao Tsé-tung, Elisa prestou atenção
ao que havia de beleza naquele país e naquele mo-
mento. Viu poesia nas mãos de crianças dançando
o balé revolucionário. E se impressionou com a de-
voção do povo ao líder chinês – um misticismo que
ela associou à semana da Paixão de Cristo. Segundo
João Moreira Salles, seu filho, que descobriu esses
registros 40 anos depois, a viagem foi um período
em que sua mãe lhe pareceu plenamente feliz. Um
comentário que ganha outra dimensão por uma
tragédia que ele não expõe em No Intenso Agora:
Elisa cometeria suicídio aos 59 anos.
Essas cenas na China, de um colorido vivo, são o
ponto de partida para outras filmagens caseiras e
outras reflexões, também associadas à segunda me-
tade dos anos 1960. Boa parte do documentário tra-

ta de maio de 1968, quando estudantes franceses
quiseram mudar o mundo, lutando contra a autori-
dade nas fábricas e universidades. A euforia daqueles
jovens, que achavam que ser realista era pedir o im-
possível, é associada à da mãe do realizador. Ambos
viam a história acontecer diante dos olhos – como
espectadores simpáticos ou agentes da revolução.
“Era tão bom estar vivo e alerta naquele período que
ninguém queria dormir”, comenta João Moreira
Salles, cuja voz em off é um guia sentimental das
transições do filme.
No trecho final do documentário, entretanto,
resta a desilusão. Uma marcha de franceses conser-
vadores, estimulada por um discurso do presidente,
reafirma a tradição que a juventude desafiava. No
mesmo ano, em Praga, tanques soviéticos esmagam
qualquer ambição democrática na Tchecoslováquia.
Uma opção de montagem que se abre a uma leitura
freudiana: a mãe e os jovens em pleno gozo de uma
felicidade irracional, de desordem, seguida pela re-
pressão do pai (Charles de Gaulle, restaurando a
disciplina na França). Um acomodamento ao status
quo que transforma a excitação no desalento de uma
sociedade que é flor carnívora – como anunciava o
slogan de uma Paris que nunca foi tão jovem.

No Intenso Agora
Brasil, 2017
Direção: João Moreira Salles

COLUNA ALEXANDRE CARVALHO
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