Mente Cérebro - Edição 317 (2019-06)

(Antfer) #1
casal se prepara para retornar ao Brasil, após a anistia. Inicialmente, Joana
resiste: fala francês com a mãe que a interpela em português, na tentativa de
afastar-se do país de origem onde o pai, desaparecido político, foi torturado e
morto por militares.
No Rio, onde a família se estabelece, rende-se ao idioma do país de origem
à medida que faz descobertas: amizades, namoro, sexo, cigarro, maconha.
Aproxima-se da avó paterna, uma mulher vivaz e afetiva. Falar com ela sobre
o pai se torna uma possibilidade para Joana, em contraste com o silêncio que
cerca o assunto na maioria das conversas com a mãe.
Aos poucos, em meio às dificuldades próprias da adolescência, a protago-
nista se permite resgatar recordações da infância. Na tarefa de construção a
posteriori, questiona-se: teria ela, aos 3 anos, denunciado, involuntariamen-
te, o próprio pai às autoridades que
o assassinaram? Uma palavra errada
teria deflagrado a tragédia? É justa-
mente a palavra (a possibilidade de
verbalizar seus temores) que retira
Joana da imersão nas fantasias de
culpa. Ao falar, ela é acolhida pela
avó e pela mãe.
Em Recordar, repetir e elaborar, de 1914, Freud, afirma que a dinâmica do es-
quecimento abarca dois processos psíquicos: um associado a impressões e ex-
periências, vinculado à exterioridade e outro vinculado a fantasias, impulsos
emocionais e pensamento, são entendidos por Freud como “atos puramente
internos”. Ainda que essa divisão seja mais didática do que prática, é possível
pensar que haja a predominância da subjetividade num grupo e a necessidade
da vinculação com o mundo externo no outro. Tão apropriado em tempos de
necessária reflexão sobre o esquecimento da truculência ainda recente no país
e o risco de trágicas repetições, Deslembro evoca o elo entre o acontecimento
passado (intuído e temido) e o momento presente, que permite a continuidade
do desenvolvimento psíquico, abrindo espaço para o acesso à própria história.

A memória, composta tanto de
elementos reais quanto fantasiados,
às vezes nos assombra não só pelo
que revela, mas pelo que pode
esconder; é o que acontece com
a personagem Joana, interpretada
pela jovem Jeane Boudier

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