ROBERTO DAMATTA - Cinzas sem fogo e guerra
Banco Central do Brasil
Jornal O Globo/Nacional - Opinião
Wednesday, March 2, 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas
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Autor: ROBERTO DAMATTA
Tenho uma memória nítida do meu primeiro carnaval.
Dele, há uma velha foto dos anos 1940. Anos em que
vivíamos em Maceió, Alagoas, e meu pai, sério e com
mapas da Europa na mesa, ouvia pelo rádio os avanços
das tropas aliadas derrotando Hitler. Mas hoje, com
cinzas na cabeça, descubro que o 'imperialismo' não é
monopólio dos 'ianques capitalistas' - lembram o
'ianque, go home'? -, mas pertence também a uma
Rússia putinista-comunista.
Na memória, a guerra e a invasão na Europa -as cinzas
que abusadamente nos envolvem como um símbolo
tenebroso do fim. Na fotografia, o testemunho do mel,
que, como aprendi com Lévi-Strauss, contém o doce tão
aguçado que se confunde com o fogo. O fogo dos
'lábios de mel' da namorada sinalizadora da vida.
Na foto, estamos, meus irmãos e eu, fantasiados de
pierrô, personagem clássico da commedia dell'arte. A
julgar pelas nossas carinhas cinzentas, éramos a
própria imagem do infeliz namorado da Colombina, que
se apaixona pelo risonho e meloso Arlequim. Nossa
'fantasia' de cetim preto - ornada com pompons brancos
e encimada por um chapéu cônico usado quando
antigamente as crianças eram castigadas -completa
esse momento cinzento do meu primeiro carnaval.
Depois de 'grande', tive a liberdade não falada, mas
costumeira, de ver e escrever sobre o carnaval como o
ritual da liberdade igualitária e libertina própria de um
sistema fortemente marcado por hierarquias e
preconceitos.
Deixei de me fantasiar, exceto quando, nos anos 1950,
me vesti de 'marinheiro', instado pelo meu amigo Celso,
de saudosa memória.
Hoje, lembro-me bem de como imaginamos ser figuras
que as festas de carnaval convocavam: ao lado do
pirata da perna de pau, do caubói de cinema e do
marinheiro ancorado pelos preconceitos de sua família,
rua, bairro, cor e classe social.
A partir disso, encontrei o famoso mel carnavalesco que
Lévi-Strauss contrasta com o tabaco, trazido para o
Novo Mundo pelo Velho. Do fumo, que pratiquei
igualmente com afinco, imitando o cinema do meu
tempo, só restam cinzas. Cinzas requentadas e
venenosas que suspendem ou disciplinam aquela festa
imaginada como não tendo regras, em que 'você podia
fazer tudo'.
Mudando de plano e passando dos meninos fantasiados
para o idoso que hoje sou, creio que entendo bem esse
momesco comando segundo o qual 'no carnaval, você
pode fazer tudo!'. Eu mesmo disse isso num seminário
em Harvard sobre rituais, em que meu mentor, Richard
Moneygrand, ficou aturdido.
Se todo ritual tem regras mais explícitas que o cotidiano
e, por isso mesmo, é um momento especial, como ter
uma festa em que tudo se pode fazer, exceto se
pensarmos numa sociedade onde poucos podem tudo
ou muito? E fazem de modo sorrateiro, porque o mundo
fora da festa é regido por regras muitos sérias e duras