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(Antfer) #1

Roberto DaMatta - Cinzas com guerra


Banco Central do Brasil

Jornal O Estado de S. Paulo/Nacional - Cultura &
Comportamento
Wednesday, March 2, 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Roberto DaMatta


Tenho memória nítida do meu primeiro carnaval. Nela,
há uma velha foto dos anos 40. Com ela, memorizo meu
pai, com mapas da Europa na mesa, ouvindo os
avanços das tropas aliadas derrotando Hitler. Hoje, com
cinzas na cabeça, descubro que o 'imperialismo' não é
só ianque-capitalista, mas também putinista-comunista.
Essas cinzas que marcam o fim da alegria e iniciam o
resguardo dos 40 dias da quaresma coincidem com
uma brutal invasão russa da Ucrânia. Será uma
quaresma padecida, com muita crucificação e
inseguranças amargas, o contrário do mel que, como
lembra Lévi-Strauss, é tão agressivo que se confunde
com o fogo: o fogo dos amorosos 'lábios de mel'
rotineiros no nosso saudoso carnaval.


Não é tranquilo imaginar um período de resguardo com
mais uma guerra europeia depois de um carnaval
banido por uma pandemia.


Seria esse um tempo de redefinição de velhas posturas
e reais opressões, tanto de um lado quanto do outro?


Não ouso responder. Sei apenas que, na foto, meus
irmãos e eu somos Pierrôs. Aquele personagem
clássico do drama italiano do século 16 e, a julgar pela
nossa tristeza, éramos a própria imagem do namorado
da Colombina que se apaixona pelo risonho e meloso
Arlequim.

Depois de 'grande', tive a liberdade não falada, mas
costumeira, de ver (e escrever) sobre o carnaval como o
ritual da liberdade igualitária, própria de um sistema
marcado por hierarquias e preconceitos. Só voltei às
fantasias quando, nos anos 1950, me vesti de
'marinheiro', instado pelo meu amigo Celso, de saudosa
memória.

Recordo que o carnaval antigo glorificava piratas de
perna de pau, caubóis de cinema e marinheiros. Hoje,
passei o carnaval vivendo o horror da guerra no
continente que se imagina como o berço da civilização,
mas cujo etnocentrismo transformado em nacionalismo
não hesita em jogar no lixo a diplomacia. Na guerra, não
há fantasias com gosto de mel, há uniformes e cinzas.
O resto tenebroso dos mortos daqueles que passaram a
ser inimigos mortais de um Estado despótico.

Na guerra, tudo vale para destruir o vizinho que virou
um outro satanizado. No carnaval, vale tudo para tornar
o folião feliz. Guerrear é um ato coletivo de morte e
cinzas, carnavalizar é uma festa do mel e da troca de
lugar. Algo semelhante ao vale-tudo de uma invasão
bélica na qual, porém, as batalhas são de confete.

Finalizo essa crônica com uma certeza: a globalização
que diminui o planeta não amplia a comiseração
humana. e

Na guerra, tudo vale para destruir o vizinho que virou
um outro satanizado

COLUNISTAS
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