Cláudia - Edição 695 (2019-08)

(Antfer) #1

100 claudia.com.br agosto 2019


todos eles jogadores – disseram acreditar que o gênero não
interfere no desempenho do atleta. Rafael foi além. Quando
percebeu que a forma de contratação dos times funcionava
quase sempre por indicação, se propôs a desenhar um
processo que incluísse mulheres e se baseasse no perfil de
personalidade, habilidade e conhecimento. Ouviu os mais
variados argumentos barrando essa iniciativa – desde que
o impacto financeiro seria maior porque não daria para
colocar mulheres junto com homens nas gaming houses,
passando por problemas que a TPM poderia provocar até
a crença de que o desempenho feminino é inferior. Só um
dos clubes, o CNB, aceitou estabelecer critérios que não
discriminassem candidatos por gênero e orientação sexual.
Mesmo assim, os recrutados não iriam diretamente para o
time principal, mas para uma espécie de escolinha para se
aprimorar. “Na primeira seleção, apenas 2% eram mulheres.
Constatamos depois que muitas nem se inscreviam porque
achavam que não seriam escolhidas”, conta.
Já uma pesquisa das universidades de Berkeley e do
Estado de Michigan, ambas nos Estados Unidos, mostrou
que homens e mulheres não apresentam diferenças de
performance em jogos eletrônicos. O estudo acompa-
nhou cerca de 10 mil pessoas nos MMOs (jogos online
com muitos participantes) EverQuest II e Chevalier’s
Romance III, avaliando a velocidade necessária para se
avançar de nível. Isso evidencia que a falta de incentivo
ao avanço feminino nos games é um problema cultural e
sociológico – portanto, sem respaldo científico.
“O ambiente dos gamers é supertóxico. Casos de ma-
chismo, racismo, homofobia e até ameaças de estupro são
constantes. Quase 100% das meninas já sofreram assédio
online”, atesta a streamer paulistana Alice Gobbi, 22 anos.
“Já pensei em apagar toda a minha existência na internet
porque é muito pesado, as pessoas são muito agressivas.
Mas não faço isso em respeito ao meu público.” Ela tem
mais de 155 mil seguidores nas redes sociais. Relata que,
desde que foi atacada por haters, ficou insegura. Não sai
mais sozinha à noite, aprendeu a se controlar para não
responder a xingamentos e tenta se blindar para evitar
desconhecidos. “Às vezes, vejo amigas denunciando
episódios de machismo, e isso ativa um gatilho enorme
em mim. Fico mal. Evito usar decote nas lives porque
qualquer coisa é motivo para comentários”, conta. Em
julho de 2018, a streamer foi seguida até sua casa e ficou
sem saber se o homem que a espreitava era um bandido,
um fã ou um hater. Desde então, ela confere várias vezes
se as portas e as janelas estão trancadas. “Já ouvi: ‘Essa

puta não entende nada de jogo’. Não é só assédio. É muito
ódio por sermos mulheres. Isso é estressante demais”,
lamenta Alice. “A nossa cultura ainda é violenta”, analisa
o psicólogo Rafael. “Em países onde há mais equidade
entre homens e mulheres, essas situações não são tão
frequentes quanto no Brasil”.
O preconceito e a discriminação se manifestam de
diversas formas. A streamer gaúcha Amanda Guimarães
Borges, a Mandy Candy, 30 anos, já perdeu seguidores por
ser transexual. Mas, aparentemente, eles não estão fazendo
falta, pois ela ainda tem quase 870 mil no Facebook e no
Instagram. “Faço questão de deixar claro quem sou. Muita
gente me xinga, fica me chamando de traveco”, diz. “An-
tigamente eu me incomodava, ficava mal e chorava. Hoje
sei que o que fazem é crime. E digo isso nos meus vídeos.”
Na própria liga feminina de CS:GO, houve um episódio
classificado como transfobia. Em um campeonato no ano
passado, o então coach da Vivo Keyd, Guilherme “Walck”
Moreno, se queixou da presença de uma atleta transexual
no time adversário. “Ele foi desligado. O nosso objetivo é a
inclusão, e não a exclusão. É nosso dever tornar esse ambiente
menos tóxico”, explica Tiago Xisto, CEO da Vivo Keyd.
As polêmicas não são exclusividade do Brasil. Em feve-
reiro deste ano, durante uma competição oficial de LoL na
Rússia, a equipe RoX, composta só de homens, enfrentou a
Vaevictis, exclusivamente feminina. No início de cada partida
de LoL, pode-se escolher para banir cinco personagens do
time adversário. Numa provocação sexista, os atletas elimi-
naram apenas os de suporte, pois o que se diz no meio é que
mulheres só seriam capazes de jogar nesse tipo de função,
considerada de menor dificuldade. Na Coreia do Sul, Kim
“Geguri” Se-yeon, pro player da Overwatch League teve que
gravar um vídeo provando que jogava sozinha, sem a ajuda
de um programa de computador, porque desconfiaram
de seu excelente desempenho. Esses episódios mostram
que, aqui ou lá fora, as mulheres precisarão seguir na luta
abrindo espaço em áreas consideradas masculinas, sejam
elas reais ou virtuais.

“A geração que está nos games


hoje ainda é aquela em que, com
4 ou 5 anos, os meninos ganhavam

videogame e as meninas Barbie”


ALESSANDRA DUTRA, PSICÓLOGA

Reportagem

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