Cláudia - Edição 695 (2019-08)

(Antfer) #1
ANA CLAUDIA QUINTANA ARANTES
é médica formada em geriatria e cuidados paliativos e autora
de A Morte É Um Dia Que Vale a Pena Viver (Sextante)

166 claudia.com.br agosto 2019


Ao meu pai


Ponto final


az nove anos que meu pai
passou para o outro lado
da vida, onde ela é eterna.
Depois que ele ficou invisí-
vel aos olhos, se tornou ain-
da mais presente no meu co-
ração, nos meus sonhos e no
meu dia a dia.
A primeira carta que escrevi
foi para ele. Tinha acabado de ser
alfabetizada. Ele estava viajando
a trabalho numa longa temporada
e pedi ajuda para minha mãe. Quando ela morreu, há
três anos, herdei uma caixa na qual ela guardava cartas
e fotografias. Precisei de muitos dias
para encontrar coragem e enfrentar
aquelas lembranças. Havia cartas
do meu pai para ela – de amor, com
pedidos de perdão, compartilhando
alegrias. Ali também estava a mi-
nha primeira cartinha, presa a ou-
tras duas por um clipe enferrujado.
Uma delas era a última que escrevi
para ele. Eu demorei muito tempo
para terminá-la e entreguei no dia
da minha formatura da faculdade.
Agradecia por ele ser meu exemplo
e por demonstrar que suas fragili-
dades (que não eram poucas) eram também força. Nem
preciso dizer quantas lágrimas chorei naquele dia.
Agora, porém, as palavras seriam outras. Se eu ti-
vesse cinco minutos milagrosos que trouxessem meu
pai de volta, diria que ainda tenho aprendido muito
com as coisas que ele falava. Desde pequena, quando
já aparecia minha personalidade forte, eu questionava
algumas atitudes dele. E ele esbravejava: “Faça o que
eu digo, não o que eu faço!”.
Eu me lembro do dia em que ele me falou para não
voltar para a faculdade de medicina, pois precisava que
eu trabalhasse para ajudar nas despesas da casa. De-
sobedeci e voltei. E teve uma vez em que, durante uma
briga difícil, ele afirmou: “Você morreu para mim”. Com

isso, me libertou de querer ser a filha perfeita. E eu per-
maneci viva para mim e para ele também. Agora eu en-
tendo que a desobediência foi a coisa mais linda que ele
me ensinou. Que por causa dele eu decidi aprender com
os atos das pessoas, e não com suas palavras. Palavras
às vezes são duras; às vezes, sedutoras. Mas a verdade
mora na atitude, que silencia todas as palavras.
Hoje eu diria para o sr. Jacyr, encabulado e emocio-
nado, bem aqui na minha frente:


  • Pai, sou corajosa porque você me ensinou que a
    maior coragem é ser imperfeita e ainda assim ser amada.

  • Pai, sou determinada porque você me mostrou que
    a vida destrói a realidade incontáveis vezes, mas não
    tem o poder de destruir nossos sonhos.

  • Pai, sei como ser feliz porque
    vi você sorrindo quando só se ima-
    ginava ser possível estar num vale
    de lágrimas.

  • Pai, aprendi a fazer o que sei de
    melhor porque você me ensinou que
    o melhor jeito de aprender é vivendo.

  • Pai, com você aprendi a amar
    todos os seres que passam pelo meu
    caminho e que enxergam minha ca-
    pacidade de amar. Você sempre viu
    isso em mim. E eu sou quem você
    sabia que eu era...
    Pai, feliz dia aí, na vida eterna!
    Queria muito que você pudesse saber que aqui, na vida
    que passa, o que não passa é a saudade que sinto de me
    ver nos seus olhos.
    Amo você. Hoje estou aumentando seu espaço de
    moradia aqui no meu coração, que fica imenso quando
    penso em você.


Hoje eu entendo que a


desobediência foi a coisa


mais linda que ele me


ensinou. Que por causa


dele eu decidi aprender


com os atos das pessoas,
e não com suas palavras.

A verdade mora na atitude


F

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