Cláudia - Edição 695 (2019-08)

(Antfer) #1
Fotos

arquivo pessoal

98 claudia.com.br agosto 2019


homens desconhecidos perguntarem para quem eu estava
pagando para jogar no meu lugar porque estava indo bem.
Isso é chato e estraga a experiência do jogo.”
A opressão é tão intensa que, no ano passado, a ONG
americana Wonder Women Tech criou a campanha
#MyGameMyName, que incentiva as mulheres a não se
esconderem, as vítimas a denunciar o assédio e jogadores
homens a não aceitar essa prática quando forem testemu-
nhas. A gaúcha Lara “LittleVelma” Lauer, 21 anos, admite
que, durante muito tempo, usou nomes neutros e manteve
um discurso antifeminista até sentir na pele os efeitos do
machismo – como gamer, na faculdade de engenharia e
no mercado de trabalho. Ela atua como streamer. No dia
7 de setembro de 2018, estava feliz porque tinha conse-
guido acumular mil seguidores. Comemorava jogando
Rainbow Six Siege. Lá pelas 4 horas da manhã, quando
alguns amigos já tinham ido dormir, um desconhecido se
juntou à equipe para completar o time. “A live já tinha se
estendido. Aquela seria a saideira”, diz ela. Como sempre
faz na presença de desconhecidos, Lara tinha silenciado
o chat de voz e de texto para evitar qualquer interação
desagradável. Mas, em um determinado ponto da par-
tida, o rapaz caiu em uma armadilha e ela o reanimou.
Logo em seguida, quem caiu na armadilha foi ela. Rindo,
Lara abriu o chat de voz e disse: “Agora me levanta, né!”.
Surpreso, o gamer parou de estancar o sangue dela e
disparou: “Puta, você é mulher? Vagabunda”. E a matou a
tiros. “Fiquei perplexa, em choque. Não só por ele ter feito
aquilo mas porque eu estava com três amigos no jogo e

Reportagem


eles não fizeram nada. Acharam a coisa mais natural do
mundo. Eu me senti impotente, destruída”, conta. Lara
chegou a chorar na live e prometeu nunca mais jogar.
Voltou atrás depois de receber uma enxurrada de apoio
pela internet e se sentir acolhida – inclusive por meninas
que se encorajaram a revelar que já tinham passado por
situações semelhantes.
“É a cultura machista se refletindo no jogo”, avalia
Alessandra Dutra, coordenadora do Departamento de
Preparação Mental do Comitê Olímpico Brasileiro e psicó-
loga da equipe de e-Sport Red Canids. “A geração que está
nos games hoje ainda é aquela em que, com 4 ou 5 anos,
os meninos ganhavam videogame e as meninas, Barbie”.
Alessandra lembra que, nos esportes tradicionais, levou
tempo até que mulheres pudessem participar de olimpíadas.
Tudo indica que no cenário eletrônico os avanços também
serão lentos. A psicóloga não vê justificativas plausíveis,
por exemplo, para que os times profissionais não sejam
mistos. “São jogos de estratégia. E função cognitiva não
depende de gênero”, salienta.
O psicólogo Rafael Pereira, que há seis anos estuda jogos
eletrônicos e está na Coreia do Sul, uma potência nos e-Sports,
concluindo doutorado sobre o tema, segue a mesma linha.
“Se estivéssemos falando de uma modalidade como o futebol
americano, com alto impacto físico, faria sentido separar
homens e mulheres. Caso contrário, não.” Intrigado com
a resistência para a formação de times mistos, Rafael foi a
campo. Entre administradores de empresas de e-Sports e
pro players, entrevistou cerca de 50 pessoas. Apenas 10% –

Isadora Slomsky Appel é psicóloga e já quase
desistiu de jogar após episódios de machismo
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