Sabor Club - Edição 32 (2019-09)

(Antfer) #1

36 | Sabor. club [ ed. 32 ]


RECENTEMENTE O MASP FOI TOMADO PELO BUZZ TARSILA DO
Amaral, na maior mostra sobre a artista já feita no mundo. No meio das selfies
incontáveis e do borburinho de “onde está a Abaporu?” (além da boa dose de
cultura que aquela gente toda levou na veia, sem perceber), pouco se falava da
casa igualmente modernista que abrigava a exposição. Muito menos da grande
mulher que a projetou e nos deixou um legado arquitetônico e de design cujo
valor é inestimável.
A romana Lina Bo Bardi (Achilina Bo, 1914-1992) era uma gênia. Ela
chegou ao Brasil em 1946, depois de fazer uma resistência ativa ao nazismo na
sua terra, e, já casada com o jornalista, historiador e crítico de arte Pietro Maria
Bardi fez muitos amigos e amou o Brasil como poucos. Não só a nossa gente,
as nossas coisas mas, acima de tudo, a nossa comida.
Lina era uma comilona confessa e cozinheira de mão cheia, igualmente
inventiva quando assumia as caçarolas. Numa galáxia muito distante da
cozinha molecular, já servia o seu carbonara (uma de suas especialidades, vale
lembrar ela era de Roma, o berço do prato) com pedras fumegantes dentro

dele, para conferir notas tostadas ao prato. Chegou a colocar corante natural
azul no arroz com camarões porque dava a ele um aspecto inusitado, quase
gráfico. Lina projetava a comida. “Onde já se viu comer algo azul? Fica muito
harmonioso, não?”, dizia.
As receitas e os cardápios do almoços e jantares que servia na sua
espetacular Casa de Vidro (veja quadro) eram todos manuscritos em cadernos,
com data e o nome do convidado ou convidados do dia. Pela sua mesa
passaram artistas e políticos com postura mais humanista. O cineasta italiano
Roberto Rosselini foi um dos seus comensais, o teatrólogo Zé Celso Martinez
Corrêa, amigo de Lina, sempre estava por lá. E declarava: “A mesa dela é linda
e cheirosa. A apresentação dos pratos e louças é arquitetônica.”
Foi com a arquiteta-cozinheira que ele descobriu os arrumadinhos, a
buchada, a maniçoba (um cozidão brasileiríssimo, criado pelos índios do
Pará, feito com folhas da maniva e carne de porco). Lina viajava pelo país, se
encantava com os pratos e, de alguma forma, colocava a sua assinatura neles.
Na verdade, ela fazia as suas intervenções em tudo, até em sanduíches. Eles

Numa galáxia muito distante da cozinha molecular, Lina já
fazia o seu carbonara com pedras fumegantes dentro dele

A Casa de Vidro
Ela é uma as joias de
Lina Bo Bardi. Você não
pode deixar de visitá-la

Nos anos 1950, o bairro
do Morumbi, em São
Paulo, era uma região
inóspita ocupa por
fazendas de chá. E foi
exatamente ali, num
terreno inclinado que
Lina Bo Bardi resolveu
construir a sua Casa
de Vidro, seu primeiro
projeto erguido no Brasil.
Ela é um ícone da
arquitetura moderna no
Brasil, suspensa sobre
pilares de apenas 17
cm de diâmetro, num
prenúncio do notável
vão sob o Masp, quer
viria anos depois.
Com janelões de
ponta a ponta, a casa
traz ainda outras
ideias arquitetônicas
geniais, como a escada
levíssima, que parece
flutuar sobre a paisagem
diante dela.
O lugar hoje abriga
o Instituto Bardi e,
além de aberto à
visitação, recebe,
esporadicamente,
instalações como a da
artista Lucia Koch, com
malhas colocadas no
lado de fora das janelas.
As cortinas se
movimentam ao sabor
do vento, com leveza
e múltiplas sensações.
Até 31 de agosto. http://www.
institutobardi.com.br
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