48 GO Outside
Radar
06/07.19
Ciclismo
48 GO Outside
EM 18 DE ABRIL de 2017, na frente do comitê
de ciclismo de estrada da União Ciclística In-
ternacional (UCI), o órgão que regula as mais
importantes provas de bike do mundo, Iris
Slappendel apresentou uma pesquisa rea-
lizada com quase 200 ciclistas mulheres. A
ex-ciclista profissional de estrada de 34 anos
(e campeã holandesa de 2014) estava em Bru-
xelas para contar à UCI como é ser uma pro-
fissional mulher nesse esporte.
Os resultados foram desoladores. Um
terço das entrevistadas ganha US$ 5.670 por
ano ou menos, e a maioria tem um segundo
trabalho para poder continuar competindo.
Entre as que recebem salário, 51% devolvem
parte do dinheiro para a equipe para conseguir
competir – pagando mecânicos, viagens, uni-
forme de competição, taxas de inscrição e até
gasolina para ir ao aeroporto. A maioria das
atletas citou assistência médica acessível, sa-
lário mínimo e contratos padronizados como
pontos sensiveis. Quando indagadas se havia
a necessidade de uma associação indepen-
dente para “representar os interesses de suas
carreiras”, 85% delas responderam que sim.
Os integrantes do comitê ficaram choca-
dos. Ninguém da UCI jamais tinha se dado
ao trabalho de perguntar a opinião das filia-
das. Quando ainda fazia parte da comissão de
atletas da UCI, Iris já duvidava da capacidade
de liderança da comunidade do esporte para
solucionar problemas. Três meses antes, de-
pois de falar com o grupo que representava os
homens, o Cyclistes Professionnels Associés
(CPA), um de seus representantes perguntou:
“Você acha realmente que mulheres são ci-
clistas profissionais?”.
Desde a famosa debandada da tenista
norte-americana Billie Jean King em 1973,
quando ela desafiou o órgão mais importante
de seu esporte para lançar sua própria Asso-
ciação de Tênis Feminino, atletas mulheres
empreenderam batalhas em quase todas as
grandes modalidades, com vitórias divisoras
de águas. Depois de preencher uma queixa
por discriminação salarial na Comissão para a
Igualdade de Oportunidades de Trabalho dos
Estados Unidos em 2016, a seleção nacional
de futebol feminino americana assinou um
novo acordo coletivo, diminuindo drastica-
mente a diferença de remuneração entre jo-
gadores e jogadoras. No ano passado, a Liga
Mundial de Surf anunciou que finalmente
igualaria o valor dos prêmios para homens e
mulheres em todos os seus eventos.
Em contraste, o ciclismo permaneceu
na idade das trevas. O comitê da direção da
UCI, formado por 18 membros, tem só duas
mulheres; fica fácil entender por que o órgão
nunca priorizou o crescimento do ciclismo
feminino. Não há competições por etapas de
mais de uma semana além do Giro Rosa, e a
paridade na distância das provas e a cobertu-
ra online ou televisiva dos eventos femininos
é quase nula – o que dificulta acordos de pa-
trocínio de maior envergadura.
Mas a liderança de Iris está finalmente for-
çando mudanças. Oito meses depois da reu-
nião com a UCI, ela ajudou a lançar a Cyclists’
Alliance (TCA), o primeiro sindicato para mu-
lheres ciclistas, com mais de cem filiadas até
agora. “Na Holanda, as mulheres são mais
desbocadas, insolentes, e lá existe bem menos
hierarquia – por isso somos mais igualitários”,
diz Iris, que é a diretora-executiva da TCA.
O grupo negociou assistência médica para
ciclistas mulheres e suas famílias, ofereceu
modelos de contratos padronizados e ajuda
legal às competidoras, criou um programa de
aconselhamento entre veteranas e novatas
e mediou 12 polêmicas entre ciclistas e suas
equipes. Em janeiro, com uma chamada de
atenção da TCA, a UCI anunciou que o World
Tour Feminino de 2020 ofereceria um salário
mínimo de aproximadamente US$ 17.000,
que deve alcançar o salário dos homens das
Continental Teams (as equipes da terceira di-
visão do ciclismo profissional masculino) de
US$ 33.000 até 2023.
O pelotão dos homens percebeu a movi-
mentação. No ano passado, duas associações
de ciclistas profissionais saíram da união
masculina, insatisfeitas com a falta de refor-
mas, diversidade e pouca voz dada aos atletas
da CPA. Em março, o ciclista britânico Mark
Cavendish tuitou sobre a TCA: “Penso que
a unidade mostrada por nossas colegas mu-
lheres é algo que nós, ciclistas homens, de-
veríamos aspirar. Respeito profundamente e
apoio todo mundo que colaborou para levar
a @Cyclists_All até onde ela está”. Vários ci-
clistas profissionais famosos e associações
nacionais de ciclistas procuraram a TCA para
se filiar. Outras tentam formar uma união para
homens baseada nos esforços da TCA.
Mas Iris quer chegar mais longe e refazer
a própria infraestrutura do ciclismo. Ela so-
nha com o dia em que dará um “chega para
lá” na UCI, para que o ciclismo feminino faça
seus próprios acordos de direitos televisivos,
patrocínios, percursos de provas e cobertura,
de forma que beneficie as mulheres, e não o
órgão controlador do esporte. Com a unidade
atual do pelotão feminino, a TCA poderia ne-
gociar com a organização do Tour de France, a
Amaury Sport Organisation (ASO), um even-
to feminino comparável ao masculino.
“Iris é uma força da natureza”, diz Joe
Harris, coautor do blog Outer Line, que cobre
ciclismo profissional como negocio. Ele e seu
sócio, Steve Maxwell, assessoraram Iris. “Ela
consegue ver o panorama completo. Como
mudar o ciclismo, que tem uma identidade
consolidada como um esporte de homens?
Só acabando com tudo.”
Iris acredita em uma ampla mudança
cultural. “Billie Jean precisou convencer oito
jogadoras. Eu tenho que convencer 300 ciclis-
tas. Algumas acreditam na nossa visão, outras
se veem apenas como uma pessoa isolada que
está lá para competir e ser paga por isso. Te-
mos cem ciclistas afiliadas. Quero mais.”
A holandesa insiste que o sucesso do seu
esporte depende essencialmente de uma
maior atenção da mídia e de competições com
transmissão ao vivo. A UCI pode pedir que a
ASO organize um Tour de France para mulhe-
res com etapas e longas distâncias, mas essa
não é a sua prioridade, ela diz, argumentando
que se prender ao antigo modelo pode ser in-
frutífero. Iris cita a crescente popularidade de
outros formatos de provas, como as competi-
ções curtas em circuitos fechados conhecidas
como criteriums. “Não podemos ter medo de
um conceito completamente novo”, afirma
Iris. “Não dá para ficar parada esperando que
a UCI mude.”
Joana dʼArc do ciclismo
durante décadas, as cOmpetições de ciclismO marginalizaram
as mulheres, ficandO atrás de quase tOdOs Os OutrOs grandes
espOrtes nO incentivO à igualdade de gênerO. a hOlandesa
iris slappendel, ex-estrela prOfissiOnal da bike, está mudandO issO
Por rachel Sturtz
Grupo Unico PDF Passe@diante