66 GO OUTSIDE 06/07.19
“CHOLATSE, MUZTAGH Tower, Ama
Dablam...” Enquanto Karina Oliani procura
no celular as fotos de algumas das montanhas
mais bonitas do mundo, à nossa frente o tempo
se abre. Aos poucos, o Salkantay vai dando as
caras, como se estivesse meio enciumado,
querendo dizer: “Ei, olha eu aqui também”.
A cena ao vivo é atraente. O Salkantay é
a montanha mais alta da Cordilheira Vilca-
bamba, nos Andes peruanos, com 6.721 metros
de altitude. Depois de uma manhã nublada, o
sol começava a refl etir o branco imaculado das
geleiras. As escarpas nevadas e afi adas, que pa-
recem ter sido esculpidas com um estilete, es-
tavam ainda mais radiantes com a luz ali refl e-
tida. Karina também se deu conta disso. “Vou
lá fora tirar umas fotos”, falou como se estivesse
escutado a queixa da montanha peruana.
Testemunhávamos a mudança de cená-
rio sentados no restaurante do primeiro lodge
do roteiro da trilha de Salkantay operado pelo
Mountain Lodges of Peru. Na mesa também
estava João Lourenço, pai de Karina, que, ao ver
a fi lha empolgada com a beleza das montanhas
no celular, esfregava uma mão na outra em sinal
de apreensão. Ele ouvia tudo em silêncio, mas,
se fosse para se pronunciar, certamente diria
que preferiria que a fi lha tivesse escolhido um
esporte menos mortal que o montanhismo.
Em junho, a primogênita partirá para mais
um desafi o épico. Com o montanhista argen-
tino Maximo Kausch, ela vai escalar o K2, a se-
gunda maior montanha do mundo, de 8.614
metros. A imponência não signifi ca muita coisa
para essa também médica e apresentadora, que
já chegou ao cume do Everest (8.848 metros)
duas vezes, uma pela face sul e outra pela face
norte – Karina inclusive é a primeira sul-ame-
ricana a realizar o feito. Entretanto o K2, locali-
zado em um ponto isolado entre o Paquistão e a
China, na Cordilheira do Karakoram, é conhe-
cido como a “Montanha Selvagem”. É um pico
que está fora de qualquer rota comercial. Toda
a logística e a própria escalada são o ultimate
challenge de qualquer montanhista.
Só a aproximação ao acampamento-base
dura cerca de uma semana de caminhada. E
dois dos principais obstáculos dessa escalada
estão localizados acima dos 7.800 metros, na
chamada “zona da morte”, uma altitude onde
o oxigênio praticamente não existe: o primeiro
é o Gargalo, uma passagem vertical, estreita e
escorregadia considerada perigosíssima; e o
segundo é um serac (imenso bloco de gelo) que
parece estar sempre na iminência de se espati-
far e rolar sobre os escaladores.
Não por acaso, nos últimos 60 anos, o K2
fez mais de 80 vítimas fatais – sua taxa de fa-
talidade é três vezes maior que a do Everest.
Sem contar a lenda que diz que lá é um lugar
amaldiçoado para as mulheres. A primeira es-
caladora que conseguiu chegar ao cume foi a
polonesa Wanda Rutkiewicz, em 1986. Porém
as cinco que tentaram em seguida morreram –
duas durante a subida e três na descida (Wanda
morreu seis anos depois, no Himalaia).
Claro que há mulheres que se consagraram
no K2. Mas muitas pagaram caro. Em 2004,
a escaladora espanhola Edurne Pasaban, que
já escalou todas as 14 montanhas com mais
de 8.000 metros, viveu momentos de pânico
na segunda maior montanha do planeta. De-
pois de 15 horas sob temperaturas negativas, a
descida se tornou uma luta pela própria vida:
Edurne teve os pés congelados, e a aventura
terminou com uma longa e dolorosa recupera-
ção no hospital, onde precisou amputar duas
falanges dos dedos dos pés.
Para Maximo, que conhece bem os per-
rengues de escaladas técnicas, ter a “mente
aberta” é fundamental. “A Karina é ‘sangue
nos olhos’, mas ela sabe também que há gran-
des chances de não fazermos o cume nessa pri-
meira tentativa. Há pessoas que vão ao K2 três
anos seguidos até conseguir pisar no seu topo.”
Em 2018, a temporada foi favorável aos es-
caladores: 60 chegaram ao cume, um número
recorde que, no mínimo, dá alguma esperança.
Mesmo assim, Karina não parece preocupada
com estatísticas e muito menos com os misti-
cismos que cercam o K2. Além de levar a letra
inicial de seu nome, seu formato de “pirâmide
perfeita” também o coloca na lista de “monta-
nhas preferidas” – escalar montanhas bonitas
importa para ela. “Sabe quando você pensa
como uma montanha teria que se parecer?”,
explica Karina. “Então o K2 é exatamente como
uma montanha deve ser. É linda, e essa beleza
me instiga. Outra questão é o desafi o: eu amo
ser desafi ada. Gosto de gastar energia e de me
empenhar em coisas que parecem impossíveis.”
Aos 37 anos (recém-completados em maio),
Karina já experimentou a maioria dos esportes
outdoor. Saltou de paraquedas, surfou ondas
grandes, explorou cânions, desceu corredei-
ras de caiaque, fez mergulho livre, wakeboard,
kitesurf, escalada em rocha, corrida de aven-
tura... Ela ainda pratica uma boa parte sempre
que possível, sentindo os prazeres e as dores em
diferentes graus. Uma vez, treinando manobras
de wakeboard em uma cama elástica, deu um
mortal de costas, voou e caiu no chão de cabeça,
apagada. Resultado: viveu seis horas como te-
traplégica, sem conseguir mexer um dedo se-
quer, só na expectativa de recuperar ou não os
movimentos. “Nunca fi quei tão feliz ao tomar
uma espetada no dedão do pé e gritar de dor”,
relembra rindo de quando fi nalmente voltou a
ter o controle do próprio corpo.
Karina não tem problema em admitir que
é competitiva. Sempre quis ser a primeira e a
melhor em tudo o que faz. Mas isso foi até ela se
apaixonar pelo montanhismo. “Agora a com-
petição é comigo mesma”, garante.
O montanhismo também despertou as
qualidades de um ser humano elevado – ou
pelo menos o esporte deu a chance de isso
florescer. Como médica especializada em
atendimento em lugares remotos, Karina
tem no sangue o instinto de ajudar. Você
passa alguns minutos ao lado dela e percebe:
salvar, socorrer, proteger são atitudes grava-
das em seu DNA.
FOI NO FIM de março, a convite do Mou-
ntain Lodges of Peru, que opera o roteiro mais
refi nado da trilha de Salkantay, que parti em
uma peregrinação rumo a Machu Picchu. Ka-
rina, seu marido, Marcelo, e o jornalista de via-
gem Daniel Nunes estavam na mesma missão.
Ela ainda convenceu seus pais a fazerem esse
caminho alternativo à Trilha Inca, no que seria
“o primeiro trekking da vida deles”, segundo
ela me revelou com um misto de empolgação
e preocupação, ainda no aeroporto no Brasil.
Também estariam conosco o casal Laís e Ed,
amigos de Karina.
Em Maychayhuaycco, uma comunidade a
3.000 metros de altitude, no meio da trilha de
Salkantay, nós nos reunimos com a ONG local
Yanapana. Munidos de cadernos, lápis, borra-
cha e material didático trazidos do Brasil, fomos
visitar a escola local que recebe auxílio da Ya-
Karina e Pemba escalaram o EVEREST pela face sul
em 2013 e fi zeram um pacto aterno: IRIAM ABRIR
MÃO DO CUME – além de arriscarem as próprias vidas – para
tentar resgatar um montanhista EMAPUROS.
Grupo Unico PDF Passe@diante