82 GO Outside 06/07.19
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Mas isso será amanhã. Hoje Nathan está
em casa trabalhando, com dois grandes
monitores na mesa e pilhas de papéis por
todos os lados. As prateleiras da estante
estão repletas de guias de escalada, alguns
escritos por ele mesmo, junto com equipa-
mentos antigos de escalada, como pitons,
piquetas e mosquetões velhos.
Na parede, um grande pôster com uma
montagem de fotos, uma com o jovem Nathan
escalando a Boris Badenov (oitavo grau), via
esportiva que ele mesmo abriu em 2012, no
East Canyon, a 20 minutos de Salt Lake; Na-
than em outra primeira ascensão, dessa vez
numa cascata congelada; e uma foto de Cheri
guiando uma escalada em gelo.
Todas elas provas tangíveis de uma vida
cheia de realizações: uma bela carreira, um
casamento maravilhoso e incontáveis con-
quistas. Por praticamente duas décadas, Na-
than Smith foi um nome conhecido no meio
da fotografia de escalada, abrindo mais de
150 vias em rocha e gelo pelos estados nor-
te-americanos de Utah, Idaho e Wyoming e
viajando a lugares tão diversos quanto Mon-
gólia e Madagáscar.
Nathan já fez fotos para publicações re-
nomadas como a Climbing, Rock and Ice e
Alpinist e escreveu cinco guias de escalada.
Aproximadamente um mês antes, ele aban-
donou o emprego de gerente de marketing
da distribuidora de equipamentos Liberty
Mountain para se concentrar em período
integral em seu empreendimento freelance
Pull Media, que faz fotografias, ilustrações
e design de produtos. Mas, cada vez mais,
parecia que era tudo uma mentira. A pessoa
conhecida pelas fotos, guias e primeiras as-
censões não era a mesma por dentro. Essa
pessoa não se chama Nathan, de jeito ne-
nhum. Seu nome é Nikki.
Olhando o Facebook, ela se lembra de
uma viagem que fez a Denver duas semanas
antes para participar de uma reunião do
American Alpine Club. Mas no tempo livre
foi até a loja de cosméticos Sephora e pas-
sou por uma transformação. Foi assustador
- e incrível. As funcionárias abriram mais
cedo e lhe ensinaram como aplicar os cre-
mes e as maquiagens, explicando para que
servia cada um dos produtos. Em vez de
uma confusão de cores que não combina-
va com a sua pele – típico resultado que ela
obtinha quando tentava se maquiar –, pela
primeira vez surgiu um rosto lindamente
produzido. Mas a euforia durou pouco. Ni-
kki teve que limpar a maquiagem e sair da
loja, de volta à vida como Nathan. A felici-
dade se transformou em autoaversão.
De volta a Salt Lake, ainda com a trans-
formação fresca na memória, ela topa com
um post de uma amiga no Facebook que a faz
parar. É uma citação de Brené Brown, da The
Huffington Foundation.
"O tempo está se esvaindo. Há aventuras
inexploradas adiante. Você não pode viver
a vida preocupada com o que os outros vão
pensar. Você nasceu merecedora de amor e
pertencimento. Coragem e ousadia correm
pelas suas veias. Você foi feita para viver e
amar com todo seu coração. É hora de apare-
cer e ser vista."
As palavras na tela poderiam muito bem
ter sido escritas especialmente para Nikki. Ela
tem dois ingressos para um show em Las Ve-
gas dali a dois dias – Pink Floyd e Roger Waters
- que ela e Cheri compraram antes da viagem
à Europa. Com as férias de Cheri, Nikki ficou
sem companhia e, com a piora da depressão,
achou melhor não ir aos shows. Agora ela está
pensando duas vezes. Talvez seja um sinal.
Talvez ela possa ir sozinha, se vestir como ela
mesma em público pela primeira vez. Poderia
aparecer e ser vista como Nikki.
No dia seguinte, ela pega a estrada por seis
horas, se produz e sai para dançar em um casa
noturna gay. Por umas poucas e felizes horas,
ela vive a vida como Nikki e dança a noite in-
teira. Quando volta de Las Vegas, decide co-
meçar terapia para entender, passo a passo, o
que significa tudo isso. Ela segue tendo pen-
samentos suicidas, mas ainda faltam duas se-
manas para Cheri voltar. Nesse meio tempo,
talvez Nikki consiga encontrar clareza sufi-
ciente para descobrir o que vai dizer à esposa - e que caminho seguir.
NIKKI NASCEU em Portland, no Oregon, no
dia 25 de janeiro de 1976, e recebeu o nome de
batismo de Nathan Karl Smith. Naquele mes-
mo ano, a família se mudou para Utah, onde
seu pai, Karl, trabalhava para o Serviço de
Gestão de Terras Agrícolas. Desde cedo, Ni-
kki (como a maioria das pessoas transgênero,
ela fala de si com seu nome escolhido, mesmo
ao se referir ao passado) explorava o deserto
e as áreas remotas com seu pai. A mãe, Mar-
gery, lhe ensinou a desenhar, pintar, costurar
e bordar. Os Smiths eram mórmons e oravam
juntos todas as noites, e depois Nikki tinha de
fazer sua oração pessoal antes de dormir.
“Desde mais ou menos 5 anos, eu ajoelhava
todas as noites e rezava para Deus me trans-
formar em menina”, lembra-se. Ela desejava o
mesmo todo aniversário e todo Natal. Quando
completou 8 anos, seu pai recebeu o diagnós-
tico de leucemia. Com uma renda modesta e
muitas despesas médicas, a família coletava
Nathan Smith tinha tudo planejado. No dia
15 de junho de 2017, o escalador de 41 anos iria
sair de casa em Salt Lake City, em Utah (EUA),
e dirigir 25 minutos até o começo de uma tri-
lha em Little Cottonwood Canyon. Dali, a
aproximação para a Aresta Sul do Mount Su-
perior era fácil, apenas uma escalaminhada de
850 metros com lances de terceiro grau de es-
calada. A maioria dos escaladores locais faz a
via em poucas horas, antes ou depois do tra-
balho, então é baixa a chance de dar de cara
com alguém no meio do dia em uma quinta-
feira. De camiseta, shorts e uma pochete de
ultramaratona, Nathan iria subir até chegar
à finíssima aresta, com pedras soltas traiço-
eiras e áreas onde era perigoso cair para qual-
quer um dos lados. A Aresta Sul é considerada
uma escalada fácil, porém uma placa serve de
lembrete de que até escaladores competentes
escorregam. Se uma pessoa despencasse dali,
ninguém suspeitaria de nada. E precisaria pa-
recer um acidente – apenas mais uma morte de
escalador, trágica, imprevisível e sem culpados.
Poderia levar até um dia inteiro para o
corpo ser encontrado, Nathan imagina.
Apesar de a área ser popular, trata-se de
um labirinto de pedras para todos os lados.
Talvez a equipe de resgate reparasse no Su-
baru velho abandonado no estacionamento.
Ou talvez a esposa de Nathan, Cheri, que se
encontrava em uma merecida viagem de um
mês com as amigas pela Europa, acabasse
chamando a polícia depois de não ter notí-
cias do marido por alguns dias. Nenhum dos
detalhes do “depois” importam, na verdade.
A depressão já lhe acometeu antes, mas
ultimamente o medo e a tristeza preenchem
cada segundo do seu dia. É como uma brin-
cadeira que ele costumava fazer quando
criança, de deitar em um cobertor e se en-
rolar como uma panqueca. Só que agora o
cobertor fica mais grosso e a panqueca mais
apertada a cada dia, até o ponto em que se
torna difícil respirar ou pensar. Talvez, re-
flete Nathan, fosse melhor para todo mundo
se ele simplesmente desaparecesse.
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