duas décadas, Cheri havia amado Nathan
como homem – e agora?
Nikki também tinha medo – e ainda tem –
das reações que a transição pode gerar, para
ela e para Cheri. Apesar da evolução dos direi-
tos LGBTQ+ nos últimos anos, a situação das
pessoas trans continua difícil. Ser transgêne-
ro é complicado e algo que muita gente não
entende. Há violência física e sexual contra
pessoas transgênero, além de um constante
discurso negativo de ódio e mensagens agres-
sivas no mundo virtual. Fora a pressão de po-
líticos tentando legislar não apenas sobre qual
banheiro as pessoas trans podem usar, mas
também sobre seus direitos a moradia, em-
prego e casamento.
“É fácil angariar votos quando se ataca
pessoas trans”, diz Dani Hawkes, advoga-
da especializada em questões trans. “Você
consegue votos agredindo mulheres tam-
bém. E conquista bônus duplo com uma
pessoa transgênero de homem para
mulher. Dani conhece os Smiths há 20
anos e diz que ideias suicidas fazem
parte de praticamente todas as histó-
rias de seus clientes trans. “É hora de
colocar as pessoas trans na frente des-
se movimento”, declara.
EM SETEMBRO DE 2017, recebi um
e-mail de “Nikki Kovach” a respeito
de um artigo que publiquei na revista
Climbing. Era sobre Jamie Logan, uma
escaladora transgênero. Antes conhe-
cida como Jim, Jamie é uma pioneira da
escalada na América do Norte e fez sua
transição aos 65 anos.
“Eu só queria lhe agradecer pela re-
portagem sobre Jamie Logan”, come-
çava o e-mail. “Não poderia ter sur-
gido em melhor hora para mim, pois venho
lutando com o fato de ser transgênero por
toda minha vida e, neste ano, finalmente
cheguei ao limite.”
Nikki contou que trabalhava no mercado
de escalada havia muito tempo e que aquele
era o primeiro artigo que ela vira sobre uma
escaladora transgênero. No dia em que ela
leu a matéria, marcou uma consulta com o
endocrinologista para começar a terapia de
reposição hormonal.
Nikki também enviou uma mensagem
anônima a Deanne Buck, ex-diretora execu-
tiva da Camber Outdoors, organização dedi-
cada a aumentar a inclusão no mercado. “Eu
tinha medo de que ninguém comprasse guias
de escalada escritos por uma pessoa trans”,
Nikki confessou a Deanne. “E que as empre-
sas não contratassem uma pessoa trans. Mes-
mo que a marca fosse liberal e me aceitasse,
minha preocupação era que eles ainda tives-
sem medo da reação dos seus clientes.”
Deanne a dissuadiu desses medos. “Sempre
haverá os críticos”, falou. “As empresa estão
começando a compreender de fato que a igual-
dade e a inclusão resultarão em mais lucros.”
Em 2017, foi organizado o primeiro LGBTQ
Outdoor Summit em Seattle. Patrocinado
por empresas como a REI e a The North Face,
o evento teve como objetivo aumentar a re-
presentatividade no mercado outdoor e criar
mais acessibilidade para que os grupos pos-
sam “SAIR para a natureza”, de acordo com
sua declaração de missão.
Perfis no Instagram como a @unlike-
lyhikers e @pattiegonia, que têm 55.600 e
121.000 seguidores, respectivamente, es-
tão começando a refletir sobre a natureza
mais inclusiva. Wyn Wiley é o fotógrafo de
26 anos por trás de Pattie Gonia. No dia a dia,
é um homem gay, mas, quando coloca salto
alto, Pattie, a persona drag queen que criou,
assume seu lugar. Em outubro de 2018, Wyn
fez a trilha da Continental Divide com ami-
gos como Pattie, produzindo fotos e vídeos.
Quando chegou em casa, postou um vídeo
curto, apenas por diversão. Quando acordou
na manhã seguinte, o vídeo havia sido assis-
tido 123 milhões de vezes.
“A REI me ligou na segunda semana de-
pois que Pattie se tornou conhecida”, conta
Wyn. “Essa resposta foi o que me fez concluir
que havia uma carência nessa área outdoor.
Fiquei totalmente surpreso pela forma como
o mercado estava pronto para me aceitar. Foi
uma lição ótima aprender que, às vezes, você
faz uma coisa e imagina que ninguém vai
gostar, e isso se torna justamente a razão pela
qual todo mundo adora.”
É claro que se vestir como drag não é sinô-
nimo de ser transgênero, mas depois de casos
assim fica uma mensagem maior: a comuni-
dade outdoor está evoluindo.
EM CASA, EM SALT LAKE CITY, Nikki está
fazendo as malas para uma viagem de tra-
balho no Colorado. São duas malas de ro-
dinhas: uma com crampons, ferramentas de
escalada em gelo, equipamento fotográfico,
botas de montanha e roupas técnicas. A ou-
tra carrega kit de maquiagem, vestidos co-
loridos, colares e sapatos de salto. É janeiro
de 2018 – três meses de terapia de reposição
hormonal –, e Nikki está preocupada se vão
notar seus seios aumentando.
E essas não são as únicas mudanças. Nos
próximos meses, ela vai perder massa muscu-
lar e redistribuir a gordura, resultando em um
corpo com contornos mais suaves. A conta-
gem de glóbulos vermelhos vai cair, e ela ficará
mais suscetível ao frio. A pele se tornará
mais fina, macia e seca, resultando em fis-
suras e rachaduras quando usar magnésio
para escalar. Os pelos do corpo vão ficar
mais finos e ralos, e os hematomas apare-
cerão com mais facilidade. O plano é que,
depois da terapia hormonal, elas decidirão
a respeito de cirurgia. Cheri tem dado apoio
e foi a algumas sessões de terapia. Mas não
tem certeza se continuará casada.
Quando me encontrei com Nikki no dia
seguinte no Colorado, ela estava separan-
do equipamentos no chão nevado, ao lado
do seu Subaru. Está deixando o cabelo
crescer – que agora quase cobre as ore-
lhas – e veste um casaco acolchoado azul
e botas de montanha tamanho 45. Ela está
com um ar tristonho. O que não chega a
ser surpreendente, já que ainda está vi-
vendo como Nathan.
No mês anterior, enquanto se corres-
pondia comigo como Nikki Kovach, con-
versamos pela primeira vez ao telefone.
Logo antes da ligação, ela me mandou uma
mensagem de texto: “Apenas um alerta, o
de que nos conhecemos. Eu não queria que
fosse surpresa”.
É claro que nos conhecíamos. “Já conver-
samos no passado”, ouvi logo que começa-
mos a falar. “Você me conhece como Nathan
Smith.” Como editora da Climbing, eu já ha-
via entrado em contato com ela durante vá-
rios anos, por ser fotógrafo e representante
de mídia da Liberty Mountain. Havíamos nos
encontrado em eventos e sempre de forma
amistosa. Minha impressão sempre havia
sido a de alguém de fala mansa e gentil, mas
com um ar deprimido.
“ e u atrasei
essa decisão por muito
tempo devido ao medo”,
diz nikki. “mas agora
não vou mais
me forçar a ser alguém
que não sou.”
86 GO Outside 06/07.19
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