Go Outside - Edição 159 (2019-06 & 2019-07)

(Antfer) #1

a
my harrity


Estou no Colorado para filmar Nikki para
um documentário a respeito da transição –
em 2016, comecei a Never Not Collective com
outras três mulheres do mercado outdoor,
para contar trajetórias como a dela. Já que Ni-
kki está no festival de escalada em gelo como
Nathan, criamos uma história: estou gravan-
do um filme a respeito de um dia na vida de
um fotógrafo de escalada.
A caminhada para a via é nevada e íngreme.
Nikki está acostumada a carregar mochilas
pesadas de fotografia, mas os hormônios es-
tão atrapalhando. Ela para frequentemente
para tomar fôlego. Ela nunca sentia frio, mas
agora sente o tempo todo. Ajusta as alças da
mochila para não apertar os seios um pouco
doloridos devido ao crescimento.
Voltamos à casa que Nikki alugou com uma
dezena de outros caras e algumas mulheres
que também estão trabalhando no festival.
Outros também começaram a chegar, todos
nossos amigos, mas nós duas estamos ten-
sas. Somos as únicas duas pessoas na sala
que sabem a verdade, e tenho a sensação de
que posso deixar escapar algo a qualquer mo-
mento. Nada garante que eu consiga esconder
o segredo e fico apavorada – e estou sob essa
tensão faz apenas cinco minutos. Nikki vem
escondendo a vida inteira.
Todo mundo toma um copo de bourbon e
começa a se soltar. Essa é uma das razões pelas
quais Nikki não bebe muito há anos, pois tem
medo de falar demais, e é por isso também que
ela se afastou do convívio social. Enquanto os
colegas de escalada fazem suas piadas, fica-
mos em silêncio, apenas trocando olhares. Em
determinado momento, vamos para o quarto
de Nikki. Ali ela fica em pé, abre um sorriso e
começa a falar a mil por hora sobre o futuro.
Faço minhas malas algumas horas depois e
a deixo lá, sozinha. Apesar de não ser tão pro-
nunciado quanto há 20 anos nos alojamentos
militares, as conversas entre escaladores ho-
mens é cheia de sexismo. Ainda que o mundo
da escalada tenha se desenvolvido em direção
à igualdade de gêneros, a escalada alpina e em
gelo ainda atrai menos mulheres, e os caras
tendem a um certo nível de machismo. Du-
rante uma viagem de escalada da qual Nikki
participou em 2017, um atleta fez uma piada
sobre embebedar outro amigo e contratar
uma transgênero para transar com ele. Nikki
ficou quieta enquanto os outros riam.
Quando a situação no Colorado fica exa-
gerada, ela vai para o quarto ou para o carro
praticar exercícios vocais. Nikki tem um tom
barítono profundo, e a fono prescreveu uma
rotina duas vezes por dia para fortalecer as
pregas vocais e afinar o tom da voz.

Essa fase de transição, em que não é
mais Nathan, mas ainda não é completa-
mente Nikki, se revela a pior. Ela só quer
poder fazer o cabelo, arrumar as sobrance-
lhas, ter seios que encham um sutiã e usar
suas próprias roupas o tempo todo. Ela já
experimentou a liberdade de ser Nikki, e
cada minuto sendo outra pessoa lhe dá a
sensação de andar para trás.

ÀS 6h15 DA MANHÃ de uma segunda-fei-
ra de 2018, encontro Nikki e Cheri em Salt
Lake. Entramos as três no carro, e Nikki co-
loca a playlist da cirurgia para tocar. Pelos
alto-falantes, Rachel Platten canta: “Esta é
minha música da luta/ A música de devolver
minha vida/ A música de provar que estou
bem”. Nikki estende a mão e a coloca na per-
na de Cheri, o casal se olha e os dois soltam
uma risada nervosa.
A rotina tem sido difícil, não só emocio-
nal como financeiramente: pagando terapia,
hormônios, consultas, cirurgias e recupera-
ção, depilação a laser, fonoaudiologia e taxas
de advogados e cartórios para mudar de sexo
e nome. O seguro pagou as consultas para a

terapia hormonal, assim como a fono, mas
todo o resto vem das economias do casal. Eles
gastaram quase US$ 100 mil no ano passado e
estão vivendo do salário de Cheri.
Durante o trajeto de 30 minutos até o
Centro de Saúde South Jordan da Univer-
sidade de Utah, Cheri passa a mão nos ca-
belos de Nikki. Nesse momento, dinheiro é
a última coisa que lhes passa pela cabeça. A
cirurgia de hoje é a segunda de três – e é das
grandes: prótese de mamas.
As transições de gênero podem acontecer
em três níveis: social, hormonal e cirúrgica (e
a estas, Nikki adiciona a mental). “Mas as pes-
soas só se interessam em saber a respeito da
cirurgia genital”, diz Nikki. “Para a maior parte
das pessoas trans, não é exatamente o assunto
favorito. Você não chega simplesmente para
uma mulher e pergunta se ela fez histerec-
tomia ou qualquer outra cirurgia delicada lá
embaixo. Mesmo quando amigos próximos
questionam sobre esse assunto, é invasivo e
não muda quem eu sou. Eu não preciso de ne-
nhuma dessas cirurgias para ser eu mesma.”
A cirurgia de mamas hoje é significativa
em sua vida. Depois do procedimento de duas

Nikki na
Califórnia,
no outono

06/07.19 GO Outside 87


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