National Geographic - Portugal - Edição 222 (2019-09)

(Antfer) #1

86 NATIONAL GEOGRAPHIC


ESSE DIA, NO CHARCO
gelado, a alcateia aproxi-
mou-se devagar, de cabe-
ças baixas, com os
focinhos procurando odo-
res desconhecidos. Nesse
princípio de Setembro,
estavam -3ºC. O curto
VerãodoÁrcticoterminara, embora o Sol ainda
permanecesse cerca de 20 horas no céu. A noite
de verdade, aquela noite de Inverno que duraria
quatro meses e precipitaria as temperaturas para
patamares abaixo de -50ºC, ainda estava a algu-
mas semanas de distância.
Eu estava sozinho, desarmado. Sentei-me no
gelo, lembrando-me que já me sentira assim
tão solitário em algumas situações da vida, mas
nunca tão vulnerável.
Os lobos separaram-se, envolvendo-me. As pe-
lagens de Inverno estavam a despontar. Enquan-
to passavam à minha frente, algumas marcas que
os tinham distinguido surgiram em primeiro pla-
no: o macho de um ano, com pelagem cinzenta no
colarinho, a fêmea cujo olho esquerdo fora perfu-
rado, provavelmente em combate com um boi-al-
miscarado. Extremidades negras nas caudas dos
lobachos que em breve se tornariam brancas. Eu
conseguia cheirar o odor do sangue de boi-almis-
carado em que eles tinham estado a rebolar.
Os mais novos trotavam à distância, desajeita-
dos. Os lobos mais velhos aproximaram-se. Uma
fêmea arrojada, provavelmente com 2 ou 3 anos
de idade, caminhou até mim e manteve-se a um
braço de distância. Tinha os olhos cor de âmbar
brilhante e o focinho enegrecido pelo sangue ve-
lho ou talvez pelos restos queimados da lixeira do
Eureka, que se sabia ser visitada pelos lobos.
A cerca de um metro de distância, outra loba
selvagem olhava-me fixamente. Decidi manter-
-me silencioso e admirei-a, fascinado. Conseguia
ouvir-lhe os ruídos gástricos, o chocalhar líquido
de um estômago a roncar. Mirou-me de alto a bai-
xo, com o nariz agitado no ar como se estivesse
a desenhar-me. Então, deu um passo em frente
e, de repente, tocou-me no cotovelo com o foci-
nho. Foi electrizante e eu tive um espasmo. A loba
afastou-se num salto e seguiu caminho, trotando,
despreocupada, olhando sobre o ombro enquan-
to se juntava ao resto da família, ocupada a refoci-
lar nos restos do boi-almiscarado.
Sentimo-nos tentados a pensar nos lobos como
nos cães: amigáveis, parecidos com figuras de
banda desenhada nos seus apetites e tendências.


Por um lado, isto deve-se ao facto de eles serem
visivelmente semelhantes. Por outro, a compara-
ção põe-nos mais à vontade na presença de uma
criatura que, durante séculos, tem sido mitificada
como um assassino implacável. O meu encontro
com os lobos de Ellesmere dissipou quaisquer
comparações com cães que me pudessem restar.
A fêmea de olhar brilhante examinou-me meto-
dicamente. Quase nunca interrompeu o contac-
to visual e eu pude vislumbrar uma inteligência
radiante, muito superior a qualquer outra faceta
que eu já tivesse visto noutro animal. Fiquei com
a inconfundível sensação de que, nas profunde-
zas do nosso DNA, nos conhecíamos.
Nada que se parecesse com algum tipo de rela-
ção pessoal. Ela não era o meu animal espiritual.
Refiro-me a uma marca genética, a uma familiari-
dade a nível de espécie. Os lobos são ligeiramente
mais antigos do que os seres humanos modernos
e, portanto, já se encontravam plenamente for-
mados quando o Homo sapiens surgiu.
Os lobos, tal como os seres humanos, são tam-
bém um dos mais bem-sucedidos e versáteis pre-
dadores do planeta, vivendo em grupos familiares
que, em certos aspectos, são mais semelhantes às
famílias humanas do que os dos nossos parentes
primatas mais próximos. À medida que o clima
vai transformando o Árctico numa fronteira mais
quente e menos previsível, os lobos irão adaptar-
-se da mesma maneira que nós o faríamos, apro-
veitandoasnovasvantagens e, se as coisas derem
parao torto,migrando para outros sítios.

OUCO ANTES DE EU CHEGAR
a Ellesmere, a alcateia
perdera a mãe. Tinha
talvez 5 ou 6 anos, ancas
estreitas, era lenta a
levantar-se, mas fazia-o
com tal autoridade que,
quando os meus amigos a
encontraramemAgosto, não repararam na sua
fragilidade. É provável que fosse mãe de todos os
lobos da alcateia, excepto do seu companheiro, um
macho esguio com uma brilhante pelagem branca.
Ele era o caçador principal do grupo, mas ela era o
seu centro. Aparentemente, não existia qualquer
dúvida sobre a identidade do líder.
A matriarca não mostrara interesse nos meus
amigos nem nas suas câmaras, embora lhes per-
mitisse uma proximidade íntima com os seus re-
cém-nascidos, estabelecendo o tom que se alarga-
ria à tolerância da alcateia para comigo. A equipa

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