National Geographic - Portugal - Edição 222 (2019-09)

(Antfer) #1
ASÓSCOMOSLOBOS 87

contou-me que o seu derradeiro acto, uma sema-
na antes de morrer, fora de dedicação inesperada.
Após várias caçadas fracassadas, a alcateia
conseguiu abater uma cria de boi-almiscarado
com cerca de cem quilogramas. Por não devora-
rem uma refeição grande há já algum tempo, os
lobos rodearam a presa, arquejando, exaustos
e esfomeados. A matriarca, em contrapartida,
manteve-se junto da carcaça e afastou os filhos
mais velhos, autorizando
apenas os quatro lobachos
pequenos a comer.
Os lobos mais velhos
imploraram, ganiram e
rastejaram sobre os ven-
tres, na esperança de
obterem um bocado. Ela
manteve-se firme, mor-
dendo e rosnando, enquanto os mais novos devo-
ravam a presa, até os seus estômagos ficarem do
tamanho de bolas de bowling. Foi provavelmente
a sua primeira refeição de carne fresca.
Por fim, os outros foram autorizados a aceder
ao alimento. Os animais encheram-se de comida
e caíram naquilo que poderá classificar-se como a
versão lupina de um coma alimentar. Algum tem-
po depois, a matriarca desapareceu. Nunca voltou
e nunca soubemos o que lhe aconteceu.
Na ocasião em que me sentei sozinho com a
alcateia, ela ainda estava desnorteada. Não havia
certezas sobre o novo líder, nem sequer sobre se a
família voltaria a caçar junta. Faltavam poucas se-
manas para o Inverno, a época da fome. A jovem
fêmea de olhos brilhantes que encostara o seu fo-
cinho ao meu cotovelo parecia desejosa de ocupar
o lugar da progenitora, embora se mostrasse pou-
co preocupada em proteger os lobachos.
Na sua primeira tentativa para chefiar uma ca-
çada,juntamentecom o macho mais velho da al-
cateia,foigolpeadapor um boi-almiscarado.


IQUEI SENTADO com os
lobos junto do charco
durante quase 30 horas,
incapaz de me afastar da
cena. Fossem quais fossem
as decisões ou as pressões
enfrentadas pela alcateia,
foram momentos de felici-
dade.Brincaram,dormitaram, aconchegaram-se.
Tentei mantê-los à distância, mas os lobos optaram
pela rotina de, de vez em quando, se aproximarem
de mim para me inspeccionarem.


O seu interesse foi esmorecendo, mas, como
estava demasiado frio, eu tinha de me levantar
de hora a hora para fazer uma sessão de aqueci-
mento, composta por exercícios de boxe e salto
à corda imaginários. O ruído que eu produzia
e a respiração ofegante atraíam sempre a alca-
teia de volta. Os lobos cercavam-me, com o seu
olhar esperto e curioso, certamente sentindo o
meu nervosismo.

A dada altura, montei a tenda a certa distância
para dormir algumas horas. Quando me prepara-
va para derreter gelo para obter água potável, a
fêmea Zarolha aproximou-se, rasgou cirurgica-
mente a tenda e abriu-a. Tirou cá para fora todos
os meus bens, estendendo-os no solo árido, dis-
pô-los numa fila bem arrumada e, depois, fugiu
com a minha almofada insuflável.
Por fim, os lobos acabaram por deitar-se e os
lobitos amontoaram-se numa pilha desordenada
de penas da almofada. Deambulei por ali enquan-
to eles dormiam. As aves migratórias já tinham
partido para sul e as raposas e os corvos estavam
silenciosos. Novelos de pêlo de boi-almiscara-
do, largado durante o Verão, espalhavam-se pela
planície, libertando um aroma adocicado, seme-
lhante a relva acabada de cortar. Aqui e além, crâ-
nios antigos afundavam-se solo adentro: o osso
rijo amarelecido por líquenes, os chifres encur-
vados na direcção do céu. Senti-me um intruso,
passeando à deriva pelas salas de uma casa vazia.
Não sei dizer-vos que membros da família
conseguiram sobreviver ao Inverno ou sequer
se aprenderam a caçar juntos de novo. Há boas
probabilidades de terem conseguido, tal como há
poucas probabilidades de os lobachos terem so-
brevivido. Depois de o último dos lobos mais ve-
lhos desaparecer da vista, nesse dia, os lobachos
decidiram levantar-se e pular atrás deles. Perse-
gui-os, mas, pouco depois, já estávamos os cinco
perdidos. Vagueámos durante uma hora e, então,
ao longo de uma encumeada sem nome, os loba-
chos sentaram-se e começaram a uivar. A sua vo-
calização foi transportada através dos rochedos,
como sucede no Árctico há muitas gerações. j

A FÊMEA DE OLHAR BRILHANTE EXAMINOU-ME


DE CIMA A BAIXO. METODICAMENTE. QUASE


NUNCA INTERROMPEU O CONTACTO VISUAL.


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