A NOVA GUERRA FRIA 65
Os dias começavam e acabavam junto das redes
de pesca. A captura do iqalupik, o salvelino árcti-
co, era tão abundante que, em pouco tempo, cada
tenda passava a estar delimitada por um pequeno
estendal de corpos cor-de-rosa rígidos, enterra-
dos de cauda para baixo em montes profundos
de neve. Quando ficávamos com fome, limitáva-
mo-nos a estender o braço para fora da tenda e
arrebanhávamos um peixe. Em certas ocasiões,
cortávamo-lo em pos-
tas e fazíamos sopa.
Na maior parte das ve-
zes, porém, comíamo-
-lo cru, fatiando o salve-
lino para a boca. Sushi
congelado, chamava-
-lhe Marvin: fresco e
frio, quase insípido.
Para lá das redes, as nossas horas escoavam-se
num poço de pequenas tarefas. Durante as pou-
cas horas da fraca luz solar do dia, havia fogões
a manter, gelo a derreter para obter água potável
e tendas para mudar de sítio quando o gelo por
baixo delas se transformava em lama. As motos-
-de-neve avariavam frequentemente devido ao
frio implacável. Um dia, uma ursa apareceu perto
do acampamento com duas crias, tornando o acto
de sairmos da tenda para nos aliviarmos (já de si
triste) uma perspectiva ainda mais sombria.
Durante a missão, partilhei a tenda com Marvin
Atqittuq e com o pai, Jacob, que, aos 74 anos, era
um dos mais famosos caçadores de Gjoa Haven.
Jacob Atqittuq nascera num igloo e falava apenas
o inglês suficiente para contar uma ou outra ane-
dota de vez em quando. Sobrevivera a invernos
brutais e a ursos esfaimados. Registara dolorosas
queimaduras de gelo, acidentes de barco e, até,
uma crise de fome que matara muitos inuit. To-
das as manhãs acordava diante de nós e, aos pés
do grande colchão que partilhávamos, cozinhava
o bannock, um pão mole e doce, entoando antigos
hinos de igreja em idioma inuktitut.
Certa noite, Marvin contou-me que tentara
uma vez sair do Árctico. Encontrara uma escola
de formação profissional no Sul do Canadá onde
se leccionavam cursos de reparação de pequenos
motores. Anos antes, porém, Jacob vira outro fi-
lho seu partir de casa e ser obrigado a frequentar
um dos tristemente célebres colégios internos do
Canadá, onde o conhecimento e as tradições indí-
genas eram cruelmente reprimidos. Pediu a Mar-
vin que ficasse, aprendesse os costumes antigos e
mantivesse a família unida.
Marvin não lamenta a sua decisão. Era agora
pai e bombeiro-voluntário em Gjoa Haven. Ar-
ranjara emprego numa empresa de manutenção
de linhas telefónicas e, pouco a pouco, estava a
aprender tudo o que podia com Jacob. No en-
tanto, Jacob também parecia habitar um Árctico
mais simples, mais antigo.
O Árctico que Marvin conhecia era mais com-
plexo. Havia menos oportunidades, mais droga.
Havia redes sociais e Internet. Marvin percebia
que este Árctico estava a transformar-se num
novo território. Lera que o gelo estava a derreter,
que outra guerra poderia dirigir-se para o Norte.
Quanto à corrida ao ouro de que estava sem-
pre a ouvir falar, não conseguia vê-la. “Tudo isso
deveria já estar a acontecer”, contou, referindo-
-se às previsões de que seriam criadas infra-es-
truturas e empregos para aproveitar as riquezas
escondidas da região. “Na verdade, não sinto
grandes mudanças. Definitivamente, não me
sinto parte dessa mudança.”
Na manhã seguinte, saí do acampamento para
uma expedição de localização de renas, na com-
panhia dos Atqittuqs e de mais alguns homens.
Quando uma tempestade de neve começou a so-
prar e engoliu o nosso grupo de caçadores, foi
Jacob quem nos guiou de volta ao acampamen-
to, recorrendo a uma combinação de GPS com
outro mapa, o mapa interior. Conduzi a minha
moto-de-neve lentamente atrás de Marvin, qua-
se cego devido a uma película de gelo que se for-
mou no interior dos meus óculos. Pouco depois,
o mundo tornara-se tão intensamente branco
que eu já não conseguia perceber onde acabava
a terra e começava a tempestade.
A certa altura, o gorro que me cobria o rosto
saiu um bocadinho do lugar, expondo alguns
centímetros da minha pele. Senti uma espécie
de queimadura, como se alguém tivesse pres-
sionado uma moeda quente contra a minha
bochecha, mas estava mais preocupado em não
ficar para trás. Horas mais tarde, dentro da ten-
da, Jacob viu a queimadura. Pressionou-a com o
polegar e disse: “Boa!”
O CANADÁ E OS EUA CONTROLAM QUASE METADE
DA ORLA COSTEIRA DO ÁRCTICO, MAS ATÉ AGORA
TÊM PRATICAMENTE IGNORADO O NORTE.