Clipping Jornais - Banco Central (2022-04-24)

(Antfer) #1

NOSSO ESTRANHO AMOR


Banco Central do Brasil

Jornal Folha de S. Paulo/Nacional - Folha Corrida
domingo, 24 de abril de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: | Pedro Mairal


Nunca choro, choro muito pouco, mas choro nos
sonhos. Choro a cântaros, com soluços e espasmos,
percorrendo construções enormes, com escadas e
recantos, choro com uma dor que preenche todo o
espaço, como se fosse a arquitetura do meu pranto que
vai se erguendo por onde passo.


Meu choro erige corredores, salões, rampas, curvas,
pontes e teatros. Lugares vazios pelos quais passo
chorando.


Uma vez sonhei que nesse perambular do choro eu
tinga que interpretar Hamlet e derepente se abriam as
cortinas, e o que eu pensava que era um ensaio diante
de uma plateia vazia era a estreia, a grimeim função,
todo o público ali olhando e eu ainda sem saber o texto,
mas chorava e caminhava entre as pessoas, chorava
tão bem que os convencia de que a obra era assim, e
me seguiam por escadas, falavam entre si, formavam
grupos, procuravam tragos, e a obra se dissolvia na
realidade e já não se sabia qual era o limite da ficção,
se eu continuava atuando ou simplesmente era um ator


que um momento antes encarnava um Hamlet mudo e
chorão.

Tenho muito talento nos sonhos. Sobretudo para
desfazer situações horríveis. Na vigília, nem tanto.

Mas eu queria falar do choro. Porque posso contar nos
dedos de uma mão as vezes que chorei dos 19 ou 20
anos até agora que tenho muito mais. Chorei quando
me separei da minha primeira namorada. Chorei quando
mor reumeu amigo. Chorei quando nasceu meu
sobrinho e estava contando à minha namorada como
ele era pequenino.

Estávamos sentados na cama dela, em sua casa, me
lembro, e lhe mostrei com os braços como era mínimo o
meu sobrinho, e quando fiz o gesto do quão pequeno
ele era no meu braço, abriu-se uma torneira de choro
que eu não conseguia explicar, mas acho que senti pela
primeira vez a esperança de alguma vez ter um filho.
Anos depois nasceram meus filhos e isso me fez chorar.

Quero dizer, é o amor o que me faz chorar. Nunca a
dor. Nunca a contenda. É o amor erguendo-se sobre a
dor, abrindo passagem através da fúria. Porque quando
morreu meu amigo fui pensar nele, em sua risada e nas
viagens que fizemos juntos, o que me fez chorar, a
paisagem de toda nossa amizade. Não a ideia
impossível de que não ia voltar a vê-lo. Isso não se
pode entender. Foi o carinho o que se fez de vaso
comunicante com a nossa água, o mundo líquido do
coração, o simples fato de nos amar. Água doce, água
salgada das lágrimas.

O amor é estranho porque não sabemos o que é.
Porque é nossa parte ondulante, furtiva, invisível,
incontrolável. É uma zona que não conhecemos, mas
sempre está. O que acontece é que às vezes acho que
a bloqueamos para seguir em frente, porque é preciso ir
de um ponto ao outro, atravessar o dia, a cidade, a
semana, o mês, é preciso seguir, e embora esteja ali
oculta a água verdadeira da força, ainda que o sol de
alguém saia sempre deste lado do mar, embora essa
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