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(Antfer) #1

Leandro Karnal - Afetos e açúcares


Banco Central do Brasil

Jornal O Estado de S. Paulo/Nacional - Cultura &
Comportamento
domingo, 24 de abril de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Leandro Karnal


Chico Buarque foi criticado por feministas. Motivo? A
letra do clássico Com Açúcar e Com Afeto. A música é
de 1967 e foi dirigida à voz de Nara Leão. A polêmica foi
forte.


Obras de arte estão inseridas no tempo. Possuem uma
dívida com aquele momento. Artistas são seres reais
que compartilham as dores e as delícias de cada
geração. Se quiser ser muito chique, use a expressão
Zeitgeist, o termo alemão para o espírito do tempo.
Quer impressionar em grau platinum? Use o latim:
Genius Seculi. Cada época e momento possuem seus
próprios espíritos. Chico era uma pessoa aos 23 anos.
A proximidade dos 80 pode tê-lo transformado.


Volto à música. É uma narrativa com início, meio e fim.
Os jovens não sabem, mas, naquela época, as músicas
continham narrativas. Algumas enormes, como Geni e 0
Zepelim. O filho de Sérgio Buarque de Holanda imagina
uma mulher na faina de manter o marido em casa. Faz
um doce que sabe ser do gosto dele. Inútil: alegando
trabalho e o sustento da companheira, ele parte para a


rua. Após uma noite de vida boêmia e de flertes, ele
volta implorando o perdão da resignada esposa. Vence
o medo da solidão, o impulso ma-terno-feminino, a
vontade de cuidar e de possuir, proteger e restringir e
ela sempre aceita: 'E ao lhe ver assim cansado/
Maltrapilho e maltratado/ Como vou me aborrecer?/
Qual o quê/ Logo vou esquentar seu prato/ Dou um
beijo em seu retrato/ E abro os meus braços pra você'.

Chico sempre foi o cantor da alma feminina. Que outra
alma encarnada em um com testosterona pode-ria
conceber uma das letras mais sensíveis da Língua
Portuguesa: 'Oh pedaço de mim'? (Oh, metade
arrancada de mim/ Leva o vulto teu/ Que a saudade é o
revés de um parto/ A saudade é arrumar o quarto/ Do
filho que já morreu.) Lirismo devastador e pungente.

Muitos homens se aproximaram da 'alma feminina'.
Quase sempre, foram gênios que projetaram muito do
masculino (medo, em particular) sobre elas. Assim
nasceram Capitu e Ma-dame Bovary. Assim Rodin
esculpiu e Picasso pintou as mulheres que maltratava
na vida real. Assim foram feitas leis civis e eclesiásticas
sobre corpos de fêmeas. Dessa forma eclodi-ram
termos como 'mulher honesta' e 'abandono de lar'. Sim,
a lei já não fala de dote ou da mulher honesta como
categoria jurídica, apenas falou e formou mentes por
muitas e muitas décadas.

Há algo que só as mulheres percebem de si? Compa-
re-se Cordulina (personagem do romance O Quinze, de
Rachel de Queiroz) com Sinhá Vitória (Vidas Secas,
Graciliano Ramos). Dois textos separados por poucos
anos (1930-1938), dois autores do Nordeste e o mesmo
sertão castigado pela aridez como pano de fundo. A
temática social, no caso, parece tornar o gênero tema
secundário.

As esculturas da atormentada e talentosa Camille
Claudel mostram, várias vezes, mulheres no desespero
do abandono. Seu amante, Rodin, dá dimensão material
ao beijo envolvente. O sonho masculino seria a entrega
da companheira e o medo feminino seria o abandono?
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