Clipping Jornais - Banco Central (2022-04-24)

(Antfer) #1

Felicidade de gado


Banco Central do Brasil

Jornal Folha de S. Paulo/Nacional - Opinião
domingo, 24 de abril de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Emiz Sodré


No mesmo dia em que se anunciava a permanência da
Finlândia no primeiro lugar do ranking dos países mais
felizes do mundo, repercutia entre nós, mas sem real
interesse popular, um relato ignominioso sobre
garimpeiros que violentam adolescentes yanomamis e
poluem os rios.


No ranking, o Brasil, que já ocupava um dos piores
lugares, caiu ainda mais. Uma auto explicação
finlandesa: os índices benfazejosse devem ao
sentimento de honestidade e comunhão inerente àquele
povo.


Variações sociais à parte, o caso brasileiro de algum
modo remete ao velho e inquietante tópico sobre a
existência, ou pelo menos a consistência política, de um
povo nacional. É de Lima Barreto (18811922) a frase 'o
Brasil não tem povo, tem ãlªateia". Antes dele, o médico
francês Louis Couty (1854-1884) tinha observado que'o
Brasil não tem povo'.


Criador do Laboratório de Fisiologia do Museu Nacional


do Rio de Janeiro, Couty é também autor de um estudo
sobre a numerosa elite escravista brasileira, além da
qual existiria apenas uma população morta. De fato,
população não é povo, no sentido de corpo político vivo
e liberalmente organizado, dando margem ao que se
entende como massas, ou seja, uma figuração pré-
política, alheia à verdade da representação: estratos
humanos excluídos do processo de poder e da tomada
de decisões institucionais.

Do ponto de vista social, a modernidade brasileira gira
em torno da constituição falha de um povo nacional.
Fantasiou-se sempre uma ideia de unidade, que é na
prática a negação elitista de outras possibilidades
concretas de organização além da oficial. O que de fato
caracteriza o país é uma pluralidade marcante de
modos coletivos de subjetivação. São 'povos', que
coexistem sob um Estado canibalizador, em geral
ocupado por governos indiferentes ou cruéis. É bem o
caso do atual, tolerado por uma burguesia de rédeas
soltas, leniente com banditismos de toda ordem
(garimpeiros, exploradores religiosos, milicianos).

Povo mesmo é criação do liberal 'Etat-gendarme', o
contrário do sombrio 'Estado-bandido' do presente. O
povo mitificado como ideia republicana una sublimou-se
na mídia e agora é resto de história, senão nicho de
mercado.

Real é a diversidade dos povos nacionais (indígenas,
negros, camponeses, ribeirinhos, caboclos), que vêm
elevando a sua voz identitária, embora à margem das
instâncias decisórias. A falência da representação
política abre portas à índole bovina das massas
customizadas como 'classe-mídia', às fraudes
messiânicas e à corrupção sistêmica.

Não é um ecossistema favorável a autoavaliações
felizes. A menos que se troque a ideia de povo pela de
gado pastoreado.

COLUNISTAS
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