Aventuras na História - Edição 228 (2022-05)

(EriveltonMoraes) #1

BRASIL


tos. Mesmo sendo ele um conhecido
abolicionista, um grupo com mais de cem adep-
tos da “Guarda Negra”, armado de cacetes, facas
e pedras, investiu contra a sua comitiva repu-
blicana, na Ladeira do Taboão, aos gritos de
“morra a República”, “morra Silva Jardim” e
“viva a monarquia”. Várias pessoas ficaram
feridas e Silva Jardim teve que se refugiar numa
casa de desconhecidos para não ser massacrado.

O ABISMO DO PRIMEIRO CENSO
Com a República proclamada, essa pecha monar-
quista ainda foi um fardo a mais nas costas dos
já perseguidos negros da Bahia. O abismo social
entre essa camada da população e os brancos já
havia ficado evidenciado no primeiro censo rea-
lizado no Brasil, em 1872. A partir dali só viria a
se intensificar nos levantamentos subsequentes.
De acordo com o primeiro censo, em 1872, a
Bahia contava com 13,6% da população brasi-
leira, embora tivesse apenas 6,6% de seu terri-
tório. Esse superpovoamento foi registrado,
sobretudo, em Salvador, com um dado revelador:
onde a população escrava era mais numerosa, a
média de habitantes em cada moradia era mais
elevada. Isso se dava principalmente na Fregue-
sia do Pilar, que detinha a maior quantidade de
escravos entre seus moradores.
A distância social entre brancos e negros era
imensa em todas as áreas, mas ficava ainda mais
evidente no que dizia respeito à alfabetização da
população. A pesquisadora Jaci Maria Ferraz de
Menezes, especialista em educação e relações
raciais, cruzou dados e estatísticas e descobriu
que, em 1872, apenas 8,06% dos negros eram
alfabetizados na Bahia. Em 1890 esse percentu-
al passou para 14,8% e, em 1940, para 20,6%.
É de se notar que em 50 anos (de 1890 a 1940)
tenha subido pouco mais de 5% o grau de alfabe-
tização da população negra da Bahia. Enquanto
isso, no Brasil, a população branca alfabetizada
saltou de 43,8%, em 1890, para 52,6%, em 1940.
Essa defasagem educacional impressiona
tanto mais quando se sabe que a alfabetização foi
critério decisivo para assegurar o direito de voto no
Brasil, no período que vai de 1881 a 1985. Ou seja: a
maioria negra, analfabeta, não tinha o mais elemen-
tar direito de cidadania estabelecido na Constituição.

Analfabetos, sem a possibilidade de ganho,
os negros entraram no século 20 expondo pelas
ruas de Salvador a barbárie da fome. Jornais da
época noticiavam constantes manifestações,
como a que reuniu centenas de pessoas, na ma-
nhã de 17 de março de 1913, para sensibilizar as
autoridades para o problema. Eram manifesta-
ções pacíficas. Os poucos que sabiam escrever
fabricavam bandeiras com dizeres: “O povo está
com fome”, ou “Abaixo a especulação”, numa
referência à carestia dos alimentos.
Esses mesmos jornais contavam histórias dos
protagonistas desses dramas humanos. Como a
de um negro encontrado doente num matagal
no bairro do Rio Vermelho, em outubro de 1914.
Ele ficara quatro dias sem comer e, por estar com
o estômago completamente vazio, passou mal
com uma simples xícara de café que lhe foi ofe-
recida por um transeunte. Segundo artigo do
jornal A Notícia, por toda a cidade se viam lou-
cos, dementes e mendigos, “vagando sem desti-
no, cobertos de andrajos, ou mesmo nus”.

O ABISMO DE TODOS OS CENSOS
Para o médico e cientista social Josué de Castro,
autor do clássico Geografia da Fome, de 1946,
o problema da subnutrição no Nordeste teve
como origem a monocultura açucareira, que
impediu que se produzisse naquelas terras qual-
quer outra coisa que não fosse cana-de-açúcar
e um pouco de mandioca. Diante disto, a ali-
mentação ficou restrita à farinha, arrastando
aquela região “à condição de uma das zonas de
mais acentuada subalimentação do país”.
Na visão do autor, a situação se agravou com
a abolição da escravatura. Por absoluta falta de
recursos, os negros se viram obrigados a redu-
zir a quantidade de alimentos ingeridos. Como
consequência, tinham menos energia. O que
era tomado pela elite reacionária como sinal de
preguiça. “A verdade é que a moleza do cabra
de engenho, a sua fatigada lentidão, não é um
mal de raça, é um mal de fome”.

FERNANDO GRANATO É JORNALISTA, AUTOR
DOS LIVROS O NEGRO DA CHIBATA (OBJETIVA) E
BAHIA DE TODOS OS NEGROS – AS REBELIÕES
ESCRAVAS DO SÉCULO XIX (INTRÍNSECA ). O TEXTO
ACIMA FAZ PARTE DE SUA ÚLTIMA OBRA. IMAGENS GETT Y IMAGES/REPRODUÇÃO WIKIPEDIA COMMONS

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