Claudia - Edição 696 (2019-09)

(Antfer) #1
FERNANDA YOUNG
A escritora, atriz e apresentadora morreu no dia 25 de agosto,
aos 49 anos, deixando quatro filhos. Escreveu 14 livros e séries
de sucesso, como Os Normais, Minha Nada Mole Vida e Os
Aspones, todas em parceria com o marido, Alexandre Machado

146 claudia.com.br setembro 2019


Aos que não nos enxergam


“Explicando melhor:
preferiria que você me
esquecesse, mas até
para poder esquecer
você vai ter que
me enxergar”

O


Ponto fi na l


i, eu estou bem aqui na sua fren-
te, mas você insiste em não me
ver. Tudo bem, opção sua, cada
um enxerga o que quer. O proble-
ma é quando você, sem ter ideia
de como sou, resolve dar a sua
visão sobre mim. Talvez você não
se enxergue também, antes de
mais nada – e assim me tire por
parecida contigo. Errando com-
pletamente.
Para começar,
eu faço questão de ver as pessoas ao
meu redor, e isso faz toda a diferen-
ça do mundo. Percebo que todos têm
algo de especial, estando aí a graça.
Percebo belezas que não são minhas,
estando aí o prazer.
Percebo inclusive você, parado
bem na minha frente, desviando seu
olhar para lá e para cá, nervoso com a
minha presença, estando aí o ridículo.
Veja bem, não há o que temer em mim. Não quero
nada que seja seu. E não sou nada que você também
não seja, pelo menos um pouquinho.
Você não precisa gostar de mim para me enxergar,
mas precisa me enxergar para não gostar de mim. Ou
gostar, e talvez seja exatamente isso que você tema. Em-
bora isso não faça sentido, já que a vida é bela, justamen-
te, quando estamos diante daquilo que gostamos, certo?
Não vou dizer que não me irrita essa sua cegueira es-
pecífica com relação a mim, pois faço de tudo para ser
entendida. Por todos. Sempre esforço-me ao máximo
para que isso ocorra, aliás; então, a sua total ignorância
a meu respeito, após todo esse tempo, nós dois tão per-
to, mexe, sim, levemente, com a minha paciência.

Se for essa a sua intenção, porém, mexer com a mi-
nha paciência, aviso que anda perdendo sua energia
em besteira, pois um mosquito zumbindo em meu ou-
vido tem um efeito semelhante. E, se me dou ao traba-
lho de escrever esta carta para você, é porque sei que
você também não será capaz de enxergar o que há nela.
Explicando melhor: preferiria que você me esque-
cesse, mas até para poder esquecer você vai ter que
me enxergar. Enquanto não me olhar de frente, ao
menos uma vez, ao menos por um segundo, vai con-
tinuar assim, para sempre, fugindo
sistematicamente da minha ima-
gem – um escravo de mim, em fuga
constante, portanto.
Pode abrir os olhos, vai ver que
não sou um bicho de sete cabeças.
Sou bem diferente de você, como já
disse, mas isso é ótimo. Sou melhor
que você em algumas coisas, pior que
você em outras – acontece. No que eu
for pior, pode virar para outro lado;
no que eu for melhor, cogite me ad-
mirar. “Olhos nos olhos, quero ver o que você faz...”*
Sempre quis cantar isso para alguém. “Olhos nos olhos,
quero ver o que você diz...”*
Pronto, um sonho realizado. Já estou lucrando com a
nossa relação, só falta você. Basta ver o que eu posso lhe
mostrar e enxergar o que eu posso ser para você.

Sempre ousada e provocadora, a talentosa escritora Fernanda Young, que nos
deixou no final de agosto, foi colunista de CLAUDIA entre 2006 e 2008. Aqui,
publicamos um de seus textos, de março de 2008, como uma homenagem

* Trechos da música

Olhos nos Olhos

, de Chico Buarque
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