Claudia - Edição 696 (2019-09)

(Antfer) #1

88 claudia.com.br setembro 2019


Mulheres argentinas


desistiram. Até hoje, nas ruas de Buenos Aires, é possível
ver garotas com seus pañuelos amarrados nas mochilas
ou com braceletes verdes nos punhos. E essa resistência
serve de exemplo para as companheiras latino-ameri-
canas. É verdade que, com raras exceções, são poucas
as mulheres de outras nacionalidades que conseguiram
organizar marchas tão grandes e eficientes. “Eu acho
que, antes de tudo, precisamos desarmar as palavras
feminismo ou feminista. Meu primeiro emprego foi em
uma revista feminista. Meus primeiros livros falavam
de aborto ou da pressão sobre as mulheres para serem
mães. E mesmo assim eu não me considerava feminista.
Achava que, por não participar ativamente de uma or-
ganização que lutava pela causa, não merecia o título.
Depois, compreendi que estava inclusa. Acho que até
homens deviam se considerar feministas se defendem
esses direitos das mulheres”, explica a escritora Claudia
Piñero. Suas declarações pró-aborto fizeram com que
recebesse ataques na internet. Chegaram fotos de fetos
ensanguentados, ameaças de sequestro ilustradas por
carros das forças militares durante a ditadura. Tentaram
até censurar sua participação em eventos literários que
nada tinham a ver com o tema. “Por outro lado, recebi
mensagens carinhosas. Em uma feira, uma mulher me
abraçou chorando. Ela queria agradecer às feministas
por termos tirado o selo de tabu sobre o aborto. Por 20
anos, havia guardado segredo sobre sua experiência e
carregara a culpa sozinha”, afirma Claudia.
Houve quem dissesse que o veto à lei era um símbolo
de derrota da luta pró-aborto. O assunto, porém, entrou
na agenda social e política. Agora, os políticos precisam
se posicionar. Alberto Fernández, candidato que saiu
vitorioso nas primárias da eleição para a Presidência, que
acontecerá em outubro, já demonstrou apoio às mulheres.

Se antes elas não sabiam ao certo qual era a opinião de
alguns governantes, hoje têm certeza. A antropóloga
Rita Segato recorre a uma metáfora para explicar esse
processo. “É como uma ferida. Quando você cutuca, sai
pus. É ruim, mas só assim cura. Nesse caso, o pus são
essas pessoas que falam coisas homofóbicas, que julgam
o corpo da mulher. É tão extremamente preconceituoso
que já se invalida.”
Se há algo com que todas as feministas concordam é
que esse tipo de discurso não tem mais o mesmo impacto
de antes. Por quê? “Para a nova geração, o feminismo
é natural. Elas não compreendem certas resistências.
Nem sequer entendem o motivo de tanta discussão e
polêmica sobre esse tema. Afinal, o direito para elas
parece óbvio”, diz Claudia. Há aí um componente his-
tórico. É uma tradição na Argentina ir às ruas. Todos
os anos, lembram a data do golpe militar repetindo
“Nunca mais” em protestos. Desde a ditadura, as mães e
avós da Praça de Maio enchem a frente da Casa Rosada,
sede da Presidência, em memória de seus filhos e netos
desaparecidos. Elas inspiraram outras ações similares
pelo mundo e também influenciaram as mais jovens. “O
que acontece é que o feminismo se manteve ativo mesmo
durante períodos difíceis. Não depende de ONGs ou
do governo, é autônomo, atravessa eventos políticos”,
explica Luciana Peker, jornalista e autora de La Revolu-
ción de las Hijas (“A revolução das filhas”, em tradução
livre, ainda sem versão no Brasil). E o movimento se
fortaleceu. Recentemente, algumas jovens argentinas
denunciaram na escola um professor que as convidava
para sair. O colégio não lhes deu ouvidos. Elas foram às
redes sociais e a Justiça interveio. “Há cinco anos, isso
não teria acontecido. Chegaria a um abuso, que marcaria
a vida de uma ou várias garotas para sempre. Talvez

“É nosso dever agora olhar
para o restante da América
Latina e ajudar as que não
têm a mesma segurança
para exigir direitos iguais”
LUCIANA PEKER, JORNALISTA E ESCRITORA
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