Clipping Jornais - Banco Central (2022-05-15)

(Antfer) #1

Uma douta podridão


Banco Central do Brasil

Jornal Folha de S. Paulo/Nacional - Opinião
domingo, 15 de maio de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Muniz Sodré


O dedo que aperta a tecla da urna na Bienal de Arte em
Veneza representa para o artista brasileiro da instalação
'Com o Coração Saindo pela Boca' apenas um dos
inquietantes desarranjos no presente corpo coletivo do
Brasil


Há outras partes corporais, mas a escultura chama a
atenção no país onde Michelangelo, pintando a 'Criação
de Adão' no teto da Capela Sistina, mostra o quase
toque do firme dedo de Deus no hesitante dedo do
homem em vias de ser criado. Já o indicador humano
concebido pelo brasileiro está podre.


Quaisquer que sejam as motivações pessoais, o artista
dispõe objetivamente o corpo como algo capaz de
refletir e pensar o meio ambiente atual em pontos
problemáticos. Em maior ou menor escala, as diversas
peças da instalação ajustam-se a uma culta tradição de
pensamento, para a qual tudo o que existe é corpo, e
este é tudo aquilo que age ou atua.


Imaginar o país como um corpo coletivo é supor que ele


assimila, de modo analogo a um dispositivo sensível, os
estímulos sociais, culturais e políticos ativos num
momento preciso da história. O que aí se figura como
um centro de interpretação pode ser o próprio instinto
popular, absorvido e materializado pelo artista.

Ao reproduzir o gesto da votação, a escultura põe em
cena o momento crucial da forma política parlamentar.
Não é necessariamente um ato de transformação, mas
algo que sinaliza a manutenção do formalismo
democrático compatível com o parlamentarismo, ainda
que os resultados possam não se traduzir em avanço
civil.

É possível votar no pior, como atestam as eleições de
autocratas, empenhados no retrocesso da história. Por
outro lado, até na opção progressista o voto é o
mecanismo a partir do qual um partido vitorioso é
obrigado a abandonar quaisquer projetos de mudança
profunda para integrar-se ao ordenamento conservador
do Estado.

Indiretamente, o trabalho do artista sugere a formulação
de outro quadro de pensamento para a política. Há um
bom tempo atrás, o filósofo e ativista francês Alain
Badiou observou que determinados acontecimentos
reais tornam-se obscuros quando se tenta compreendê-
los a partir de referenciais antigos como o Estado, o
partido, a história e as classes. Acontecimentos pouco
claros, porque se passam fora dos quadros da
representação clássica, exigem uma atenção ainda
estranha à prática política.

Embora democraticamente imprescindível, o voto não
mostra tudo, isto é, não faz entender o que realmente
pensam e querem as pessoas. Esse, porém, seria um
caminho inovador auscultar e sintoni-zar-se com o
melhor das massas para instituí-las como povo. Sem
isso, o dedo cumpre o rito eleitoral, porém, cedo ou
tarde, revela-se podre no gesto.

COLUNISTAS
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