Clipping Jornais - Banco Central (2022-05-15)

(Antfer) #1

Leandro Karnal - Hipocrisia


Banco Central do Brasil

Jornal O Estado de S. Paulo/Nacional - Cultura &
Comportamento
domingo, 15 de maio de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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O termo remete à falsidade. Pensamos no hipócrita
como alguém que diz uma coisa e sente outra. Pode ser
a pessoa diferente do que prega. Um fariseu, um
dissimulado, uma pessoa de duas caras: eis a primeira
aproximação do hipócrita. Outra boa aproximação é
acompanhar discursos de alguns políticos.


Trato do termo em outro caminho. Somos obrigados a
elaborar e cumprir regras pela vida em sociedade. A
tendência da norma é funcionar para o interesse
coletivo. Claro, aqui e ali, o dispositivo fica autônomo e
cumpri-lo passa a ser o objeto em si, independente do
que o gerou e seus objetivos.


Explico-me. Durante a pandemia, as companhias
aéreas tiveram de seguir novas diretivas. Eram boas
medidas de segurança: quando o avião pousava, todos
deveríamos aguardar em grupos para desembarcar.
Terminava o lufa-lufa tradicional e forçava-se, com
motivos sanitários corretos, um modelo mais lento e
mais seguro para sair da aeronave. A regra é muito boa.
Problemas: a) estávamos encostados uns nos outros
dentro do avião. Ao meu lado, duas pessoas
desconhecidas que roçaram no meu braço por uma,


duas ou três horas. Passamos a descer de cinco e cinco
fileiras e ficamos de pé junto a pessoas de cinco fileiras
(cada uma, em média, com 6 lugares, logo, 30
pessoas). Seria mais seguro estar apertado de pé com
30 pessoas? Ainda mais grave: muita vez vamos do
avião para um ônibus. Depois de termos descido com
ordem e metodicamente, civilizados e obedientes,
voltamos a aglomerar um ao lado do outro, apertado,
dezenas de pessoas. Qual a utilidade da regra de
descida? Alimentar nossa hipocrisia, suprira cena
pública, destacar a teatralidade sanitária social. É
importante o isolamento social? Fundamental! Seria
bom que não aglomerássemos? Sem dúvida! O que
ocorre ao chegar difere de tudo que desejávamos.

Não se pode tirar a máscara durante o voo! Sabemos
ser medida adequada, bem concebida e defensável ao
extremo. A não ser... que estejamos bebendo água.
Minha vizinha de assento hidratou-se por 50 minutos, de
Congonhas ao Santos Dumont. Bebericava em
quantidades homeopáticas cada precioso gole e, assim,
não precisou de máscara durante todo o trajeto. Uma
estratégia? Uma sede imensa? Alguém que lutava
contra a desidratação ou que tinha angústia com o uso
da máscara. Nunca saberei, todavia, coloco na conta da
hipocrisia. Se ela estivesse sem o copo na mão, poderia
ser alvo de todas as críticas e até forçada a
desembarcar se o avião estivesse no solo. O copo vira
um habeas corpus, uma suspensão da pena e da
moralidade sanitária.

Vivemos da cena pública. A cozinheira toca centenas de
vezes nos alimentos ao prepará-los. Quando chegam
até a mesa, usam-se luvas, garfos, colheres e outras
coisas para simbolizar O caráter asséptico e imaculado
ali, na minha frente. Equivale a um atestado de pureza
depois de uma vida pouco recomendável. Precisamos
ver o cuidado de higiene. Não é necessário que ele
tenha existido há 15 minutos. Nossa demanda por
hipocrisia existe.

O objetivo da crônica não é a denúncia. Poucas coisas
são tão hipócritas como a denúncia. O objetivo é
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