National Geographic - Portugal - Edição 223 (2019-10)

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No dia 6 de Setembro, alcançam a localidade
gaditana. No cais, a população não consegue reco-
nhecer a orgulhosa esquadra que dali partiu três
anos antes naquele punhado de mortos-vivos.
A nau e eles próprios encontram-se tão maltrata-
dos que pedem a um navio que os reboque até Se-
vilha. É durante essa espera que Elcano escreve a
missiva ao jovem soberano, que deixara como rei e
que o recebe agora já imperador. Calcula-se então
que, entre desvios, bordos e navegações insulares,
os sobreviventes tenham percorrido cerca de 42
mil milhas, ou seja, 78 mil quilómetros. Concluí-
ram não uma, mas quase duas voltas ao mundo.
Carlos V responde à missiva de Elcano uma
semana mais tarde. Pede-lhe que escolha dois
homens da sua confiança para se reunir com ele
em Valladolid e contar-lhe de viva voz a aventu-
ra. “É o imperador do mundo, mas não conhece
o mundo”, observa o historiador Carlos Martínez
Shaw. “É Elcano quem lho mostra.” Na sua carta,
dá como concretizados os dois únicos pedidos
que o marinheiro basco lhe fizera: a libertação
dos homens que ficaram em Cabo Verde e a parte
proporcional que todos os sobreviventes devem
receber dos quase seiscentos quintais de cravi-
nho que chegaram ao porto. Ao próprio Elcano é
concedido um escudo de armas, com as valiosas
especiarias e a divisa primus circumdedisti me
[foste o primeiro a dar-me a volta], e uma tença de
500 ducados anuais. Infelizmente, a burocracia
não esteve à altura da glória do momento, nem da
magnanimidade do rei. Elcano morreu antes de
qualquer um destes pagamentos.
Antonio de Pigafetta, cronista incondicional de
Magalhães, consegue ser recebido nas cortes de
Carlos V, João III de Portugal e Francisco I de Fran-
ça, para lhes dar a conhecer a aventura, e envida
esforços para transformar o seu caderno de notas
num livro: a “Relação da Primeira Viagem à Vol-
ta do Mundo”. A sua pluma e a magia da impren-
sa encarregam-se do resto: a aura de Magalhães,
apresentado como herói da gesta, cresce a nível in-
ternacional, enquanto o marinheiro basco é quase
silenciado. “Na verdade, ambos são complemen-
tares”, afirma Luis Mollá. “A gesta não teria sido
possível sem qualquer um deles.” A soma dos dois
transforma uma expedição comercial num péri-
plo histórico que abalou crenças antigas, revelou
a verdadeira escala do nosso planeta e abriu novas
rotas de comércio que se utilizarão durante sécu-
los, até à construção do canal do Panamá. Uma
expedição multinacional que se torna universal
e traça uma linha sem regresso entre o conheci-


mento medieval e as inovações do Renascimento.
“A classe ilustrada comparou a epopeia com a de
Jasão e os argonautas, elevando a história quase
a mito”, afirma María Luisa Martín Merás, antiga
directora do Museu Naval de Madrid. “Abriram o
oceano, o mundo e, com ele, as mentes.”
Hoje, chamamos-lhe globalização. Talvez demo-
rasse algum tempo a germinar, mas aqui se desen-
volveu a semente desse conhecimento e comércio
transoceânico, com as suas luzes e sombras. “De-
pois daquilo, a Europa já não podia ser a mesma”,
resume o escritor Gabriel Sánchez Sorondo.
Elcano foi incapaz de resolver o problema geo-
gráfico que mais preocupava o monarca espanhol:
de que lado ficavam as ilhas das Especiarias? Nem
ele nem ninguém pôde fazê-lo, uma vez que só
passados 250 anos foi inventado o método das
distâncias lunares, que permitiu medir a longitu-
de. Além disso, naquela época, a localização das
Molucas não interessava. Em 1529, três anos após
o seu casamento com Isabel de Portugal, Carlos V
renunciou às pretensões sobre as ditas ilhas, em
favor do país vizinho. O seu preço, que tantas vi-
das custou, cifrou-se em 350 mil ducados de ouro.

TERMINA AQUI o relato da expedição que circum-
-navegou a Terra, mas não o de Elcano. Desejoso
de reivindicar as ilhas recém-descobertas, o rei
organizou nova expedição três anos depois, em


  1. Foi um fracasso total. À semelhança da ante-
    rior, perderam-se navios e vidas, descobriram-se
    estreitos e registaram-se deserções. Tal como nes-
    sa expedição, numa espécie de maldição, os seus
    comandantes morreram no Pacífico antes de
    alcançarem as Molucas. No dia 6 de Agosto, o
    cadáver de Elcano repousou para sempre no ocea-
    no no qual quase atingira a glória. Um dos seus
    homens, Andrés de Urdaneta, lamentou a sua
    morte no diário de bordo, sem imaginar que seria
    chamado a dar seguimento à sua façanha, desco-
    brindo, 40 anos mais tarde, o famoso caminho de
    regresso que ligaria as duas margens do Pacífico
    através da valiosa rota do galeão de Manila, entre
    as Filipinas e Acapulco. j


Dois meses depois de
escrever a carta de
Sanlúcar, Elcano fez
chegar a Carlos V outra
missiva, que andou
perdida até 2016, ano
em que foi descoberta
pelo historiador Borja
Aguinagalde na

casa-torre de Laurgain.
Nessa carta, solicita uma
série de mercês, entre as
quais as mesmas concedi-
das a Magalhães: o hábito
de cavaleiro da Ordem de
Santiago e a Capitania-
-Mor da Armada. Nenhuma
lhe foi concedida.

MENDI URRUZUNO
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