Elle - Portugal - Edição 374 (2019-11)

(Antfer) #1
ELLE PT 75

uando um homem decide pôr -te um dedo na boca,
o que é suposto fazermos?», perguntou a minha
amiga Sofia, de 30 anos, enquanto bebíamos uns
copos num bar no leste de Londres. «Mordemos?»,
disse. Ela explicou -me que o contexto daquela
pergunta era um jantar, o terceiro encontro, e que até ali
tinha sido um homem impecável. Charmoso e falador. Já se
tinham beijado (sem usar a língua). «Ele pareceu -me inte-
ressante. Por isso, não queria só mordê -lo, sabes?» Ele tinha
tirado um pouco de mousse da taça com o dedo indicador e,
sem que se apercebesse, em segundos ela já tinha um pedaço
de chocolate na boca. «Ainda estava a mastigar outra comida»,
explicou. «E depois o dedo dele ficou lá demasiado tempo.
Isso conta como assédio?» Ela estava a rir -se e eu também, mas
temos de nos questionar sobre o que um homem que se sente
confortável a meter o dedo na boca de outra pessoa em público
é capaz de fazer em privado. Ela nunca mais voltou a vê -lo.
Contei -lhe uma situação de há um ano e meio, quando
fui a um encontro em que o homem insistia em sentar -se
ao meu lado, em vez de se sentar à minha frente, como
normalmente acontece. Fomos a um pequeno espaço de
comida coreana perto do meu escritório; modesto mas com
boa comida. «Parecíamos irmãos.» Quase que me ri quando
ele se sentou ao meu lado. De tempos a tempos, esfregava o
braço dele no meu e dizia: «A tua pele é tão macia!» Mais
tarde, depois de fazermos sexo, confrontou -me dizendo que
eu não tinha emoções. «Como é que uma pessoa tão doce
em tantas coisas consegue ser tão fria noutras?» Voltou -se
para o lado e puxou o lençol dramaticamente. Foi apenas
o nosso segundo encontro e disse -lhe que era absurdo agir
daquela maneira só porque eu não queria fazer conchinha.
«Se calhar, gosto do meu espaço quando quero dormir, não?»
Nunca mais voltei a vê -lo.
«Há algo desconcertante em homens que acham que
têm o direito de se meterem no teu espaço pessoal.» Sofia
concordou comigo. «Não é como se fosse perigoso ou assim,
mas é estranho, entendes?»
Terá havido algum momento na história dos relaciona-
mentos em que prestássemos tanta atenção aos pormenores
das nossas interações amorosas? Não apenas às atitudes – do
tipo “ele fez isto” ou “ela disse aquilo” em todos os encontros


  • mas sim à dinâmica dos poderes subtis, das suposições e
    das normas que apoiam essas atitudes. Em quase toda a esfera
    de relacionamentos – desde o momento em que conhecemos
    os nossos parceiros até às condições que definimos para eles,
    desde a fidelidade e da monogamia à intimidade em si –, o
    cenário está mesmo a mudar.


Comecemos com a campanha MeToo (como é que podería-
mos não o fazer?). Não expôs unicamente o assédio, fez tam-
bém com que muitos de nós mergulhássemos naquele pântano
sombrio entre o desagradável e o ilegal, para arrancarmos
experiências e examinarmo -las bem. Meter -os -dedos -na -boca
pode não ter sido “perigoso”, mas com certeza que foi desa-
gradável, e antes desta consciencialização, nunca teríamos
considerado isso. Agora vamos mais fundo: recentemente
estive presente num debate universitário sobre consentimento
e observei 12 alunos e um professor que tentavam concordar
em regras sobre coisas que anteriormente teríamos dito que
eram demasiado difíceis de definir.
Fiquei impressionada com o facto de jovens de 18 e 19
anos – vestidos da cabeça aos pés com peças encontradas na
Depop, a fumarem cigarros eletrónicos (vapers) e a usarem
calão que eu nem conhecia – serem mais esclarecidos sobre
estas questões do que eu alguma vez fui. Por momentos, dis-
cutiam maneiras de utilizar certas expressões que garantirão
consentimento, sem arruinar o clima (“Posso pôr a minha
mão por baixo da tua blusa?”, os estudantes concluíram
que esta expressão era mais sexy do que “Posso tocar -te no
peito?”). Ou quando um sinal pode ser considerado consen-
timento não verbal. Dei por mim a pensar em quando tinha
a idade deles (tenho 30 anos). Estes pensamentos nunca me
passaram pela cabeça.

Mas a revolução não está só a acontecer em salas de
aula. Cá fora, no mundo dos relacionamentos, o aumento de
“gravações com consentimento” – quando o homem pede
à mulher que grave uma mensagem de voz ou um vídeo
que mostre que quer ter relações sexuais – implica que há
todo um estrato inteiro de homens que ainda não percebe
o que é consentimento e que quer proteger -se. Aconteceu
recentemente a uma amiga minha, a Natália, 32 anos. Era
o segundo encontro, tinham saído para beber uns copos
(o que acabou por se transformar num jantar) e depois foram
para a casa dele. Os efeitos do vinho e a tensão sexual subiam.
A mão dele começou a subir pela coxa dela, até que parou
e disse: «Importas -te só de fazer uma gravação de voz a dizer
que consentes isto?» Ela disse que legalmente isso não teria
qualquer valor, porque o consentimento pode ser retirado
a qualquer altura, «mas por outro lado, é tão estranho».
Os debates originados pelo MeToo sobre poder e consen-
timento não são os únicos fatores a fazerem com que o campo
amoroso esteja a mudar drasticamente, comparativamente
com o que existia há dois anos. Novos conceitos como a não
monogamia e a poligamia, bem como a anarquia de rela-

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