Clipping Jornais - Banco Central (2022-05-24)

(Antfer) #1

LEO AVERSA - OS DIAS DEPOIS DO FIM


Banco Central do Brasil

Jornal O Globo/Nacional - Segundo Caderno
terça-feira, 24 de maio de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: LEO AVERSA


A sala, vazia, está repleta de restos: da melancolia dos
últimos dias, da desolação pelo que se foi, da angústia
de não saber o que virá. No alto do Jardim Botânico o
vento sopra frio e espalha a solidão pela nova casa.


É difícil sobreviver depois do fim.


Durante o dia surgem as lembranças do que ficou lá
atrás: a descoberta e o encanto do início, o brilho nos
olhos entregando a emoção. O desejo. As escovas
acordando no mesmo copo, o vício. As viagens a dois, o
fascínio no ar, o tempo voando, os sonhos ainda não
cobertos de poeira. A paixão, o amor. O esperado dia
do sim, a casa móvel a móvel, o dia a dia, o entusiasmo
do sábado à noite, a delicadeza nos domingos de
manhã, o conforto de chegar ao lar depois de um dia de
trabalho. O Neruda ainda na cabeceira, acama, a
sintonia. Os planos para um futuro, então presente. À
cumplicidade, o ritmo, a música que emocionava aos
dois. A leveza, o arrebatamento. A vontade de se ver, a
necessidade se encontrar, o anseio por muito mais. As
ilusões divididas e multiplicadas. A vontade de seguir


juntos por um longo caminho. A esperança de que
qualquer problema ia se ajeitar. A esperança.

A vida.

A noite aparecem as recordações dos últimos tempos:
as diferenças que nunca encontraram solução, o que foi
sentido e, mais de uma vez, calado. O que se guardou
não resolvido e apodreceu, transformando-se em
mágoas e ressentimentos destilados a conta-gotas. Os
silêncios, a indiferença. A culpa pelo que não deu certo,
a consciência do quanto foi feito de errado. Os
equívocos. A falta de atenção. As mãos que não se
encontravam mais e depois, esquecidas, sequer se
procuravam. O rancor. As pequenas discussões nos
detalhes, no que não tem importância, disfarçando as
grandes discórdias nunca superadas, naquilo que era
fundamental. A sensação de fracasso. O sentimento
pungente de que poderia ter sido de outra maneira,
mas, por não ter sido o suficiente, por não estar à altura,
nunca foi. A dor. Os corações que já não pulsavam no
mesmo ritmo, os olhares desviados, o vazio. A certeza,
amarga, de que havia chegado a hora de partir.

A tristeza do fim.

Na madrugada da casa nova as lágrimas misturam
todas as memórias. Noite e dia se transformam em algo
só, um nevoeiro denso, onde é difícil encontrar alguma
saída. Já não há caminhos.

E agora?

Na noite da sala vazia, no alto do Jardim Botânico, se
vê ao longe a Lagoa, o Dois Irmãos, o Hotel Marina que
já não acende mais. Também se vê o que vai nos outros
apartamentos: casais iluminados pela TV da sala, pais
brincando com os filhos no quarto, famílias sentadas
esperando o jantar. Em cada casa, em cada cena,
fragmentos de tudo o que se foi, do que não existe
mais. Se vê nas outras casas a felicidade há muito
perdida, e com ela vem a vontade de bater em cada
porta, em cada janela e perguntar como faz, qual o
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