Clipping Jornais - Banco Central (2022-05-24)

(Antfer) #1

O que fazer com nosso ciúme?


Banco Central do Brasil

Jornal Folha de S. Paulo/Nacional - Cotidiano
terça-feira, 24 de maio de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Vera Iaconelli


Santo Agostinho disse, no século 4º, "qui non zelat non
amat" ou "quem não sente ciúme não ama". Ele se
refere à criança que ganhou um irmãozinho e sofre ao
ver os pais dividindo atenções.


O ciúme é um afeto que está em todo lugar: na
amizade, na sala de aula, no trabalho, na família. Basta
juntar três e passamos a comparar quem recebe maior
ou menor atenção, carinho e deferência. Nada mais
humano e, portanto, nada mais banal.


Vinícius de Moraes, que cantava que o "ciúme é o
perfume de amor" era conhecido por exigir fidelidade
dos amigos com quem trabalhava. Chico Buarque
conta, em entrevista, da reprimenda que recebia do
poetinha toda vez que surgia com outro parceiro
musical.


Não se trata absolutamente de demonizar um afeto, erro
comum de quem acha que dá para produzir um ser
humano mais "limpinho", sem os constrangedores
ciúmes, inveja, ódio, medo. Erro que decorre da


aspiração em transcender a humanidade em nós,
posição na qual estaríamos acima do bem e do mal e,
provavelmente, caminhando sobre as águas.

Embora o ciúme faça parte, é imprescindível lembrar
que não existe experiência humana que não seja
mediada pela linguagem, ou seja, o que é esperado e
aceitável no mundo dos afetos é atravessado pela
relação entre os costumes, a época e o sujeito.

Portanto, devemos ensinar às crianças a melhor forma
de lidar com o ódio pela chegada do irmão, inibindo
atitudes que a coloquem em perigo físico e moral. O
mal-estar entre adultos também é comum, mas
tampouco justifica deslealdades ou crimes.
Recentemente vimos o ciúme da filha servir de
explicação para um triplo homicídio, no caso do jovem
ator Rafael Miguel.

Quando se trata de irmãos, amigos e colegas é de se
esperar que o sujeito se conforme com o fato de que a
vida é muito mais legal quando compartilhada com
várias pessoas a quem amamos e respeitamos do que
no círculo apertado das duplas fechadas, de caráter
usualmente patológico. Churrasco com um amigo não
rola.

Mas quando se trata do par amoroso, ainda acreditamos
que a exclusividade é regra e a livre expressão do
ciúme, um direito. Nele, o ciúme é tido como óbvio e as
reações passionais como justificáveis, ideia da qual
decorre a nefasta suposição de crime passional. Alguém
acredita que esse abominável subterfúgio jurídico
colaria no assassinato de amigos por ciúme? Algo
como: amava tanto minha amiga, que ao vê-la no
shopping com outra, não tive dúvida e a estrangulei.

A mentalidade que pretende que o desejo no par
conjugal seja controlado por decreto é baseada na ideia
de possessão e exclusividade. O ciúme entre casais é
visto como prova de amor para homens e mulheres,
mas são elas que perdem a vida quando o companheiro
as vê desejando algo além da relação.
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