Clipping Jornais - Banco Central (2022-05-25)

(Antfer) #1

PROFESSORINHAS, TRAMBIQUEIROS E FREIS COMUNISTAS


Banco Central do Brasil

Jornal O Globo/Nacional - Segundo Caderno
quarta-feira, 25 de maio de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: MARTHA BATALHA


Todos os extrovertidos são iguais. Os introvertidos o
são cada qual à sua maneira. Quando se safam de
interagir com estranhos, se escondem com alívio, cada
qual procedendo com a mania que lhe apetece. Neste
exato momento, companheiros introvertidos atuam em
segredinhos e prazeres: pontos de tricô, solos de
guitarra, quem sabe outro bolo, páginas lidas. Qualquer
coisa capaz de fazer o mundo menos assustador, e não
porque as manias de um introvertido mudam o mundo,
mas porque quando imersos em nossas manias o
mundo lá fora não existe.


Meu mais recente escapismo é a coleção da revista
Realidade, números 1 ao 74, publicadas de 1966 a



  1. Dez quilos de papel velho cuidadosamente
    embrulhado em celofane transparente, presenteado por
    mim e para mim quando estive no Rio, e que agora
    residem no topo de uma estante junto à pilha não
    menos massiva de revistas Geográfica Universal.


Para quem não sabe, e para os que sabem e querem
lembrar (mesmo que doa): a revista Realidade publicou


as mais cândidas, originais e necessárias reportagens
sobre o Brasil daqueles anos. Abril de 1970: vestindo
capa marrom e sob o guarda-chuva cor de laranja, a
professorinha Jurema segue de canoa rumo à Ilha de
Cananéa, onde seus 12 alunos aguardam a lição.
Outubro de 1966: candidatas a miss são levadas na
caravana da beleza (dois ônibus comuns), para uma
sessão de fotos numa praia do Rio. Trocavam de roupa
atrás de uma pedra quando uma onda estragou o
penteado da miss Guanabara. Muito desapontada, miss
Guanabara não pôde participar da sessão. Fevereiro de
1972: romeiros apinham a cidade de Freixeiras para
adorar Santa Quitéria. Quem lucra é Olegário, detentor
do monopólio develas e santinhos, e que não assina a
carteira dos funcionários. Novembro de 1966: jovens
padres dominicanos posam para a foto com roupas
comuns. Manchete: Revolução na igreja - eles estão
prontos para serem perseguidos e torturados (e foram).

O problema de escapar do mundo lendo a revista
Realidade é que o Brasil reportado por ela angustia
tanto quanto o atual. E como ver um livro de fotos do
Rio antigo tiradas por Augusto Malta. Em metade das
fotos eu desejo que nada tivesse sido construído, em
metade que nada tivesse sido demolido. Só que, no
caso da revista Realidade, a angústia tem a dimensão
do Brasil.

Não sei se éramos melhores - havia nos anos 1960
mais analfabetismo, desnutrição, mortalidade infantil.
Mas éramos mais simples. Parecia mais fácil consertar.
Parecia que todos os alunos da professorinha Jurema
iriam se formar e sair da pobreza. Parecia que os
Olegários iriam sumir.

Ah, fiquei melancólica. A Realidade não é revista para
ser lida com avidez. Deve ser consumida como canapé.
É uma publicação intensa. Eu, se fosse médium de
publicações, diria que a Realidade pulsa na minha
estante, ao lado da massa fria e moribunda da
Geográfica Universal (aborígenes sempre me
pareceram criaturas mais perto de Marte que dos
nossos hermanos argentinos). Mas escapar é preciso, e
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