Clipping Jornais - Banco Central (2022-05-27)

(Antfer) #1

MARTÍN FERNANDEZ - O tapa na mesa de Steve Kerr


Banco Central do Brasil

Jornal O Globo/Nacional - Esportes
sexta-feira, 27 de maio de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Horas antes de uma partida decisiva pela NBA, o
técnico do Golden State Warriors, Steve Kerr, fez um
discurso incisivo contra senadores americanos que
colocam os interesses do lobby pró-armas acima das
vidas de seus compatriotas. O desabafo de Kerr foi
movido pelo massacre numa escola do Texas, ocorrido
naquele dia, que resultou na morte a tiros de 19
crianças e dois professores. Aos gritos, emocionado, o
treinador lembrou de recentes casos semelhantes,
bateu na mesa, disse que não aguenta mais os minutos
de silêncio ou as mensagens de condolência para as
famílias dos mortos e lançou no ar uma pergunta: '


Quando vamos fazer alguma coisa?'


A raiva justificada de Kerr contrasta com a apatia
generalizada do esporte brasileiro e de suas figuras
importantes diante de crimes tão ou mais chocantes
ocorridos no Brasil. No mesmo dia do massacre no
Texas, 23 pessoas foram assassinadas numa operação
policial na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio. A contagem
de corpos ainda não havia terminado quando começou
a corrida pela busca de antecedentes criminais dos
mortos -como se fosse uma justificativa aceitável. Aqui,


quem puxou o gatilho foi elogiado. Melhor ficar com a
definição do jornalista Marcelo Macedo, da Anistia
Internacional: 'Se a polícia entra numa favela, 23
pessoas morrem e o motivo da incursão continua lá,
essa operação é um fracasso. '

Também na quarta-feira, em Sergipe, assassinos
sádicos vestindo coletes da Polícia Rodoviária Federal
levaram ao paroxismo a barbárie nossa de cada dia. À
luz do sol, diante de câmeras de telefones celulares,
apresentaram ao mundo uma versão bem brasileira das
câmaras de gás. Agentes da PRF trancaram Genivaldo
de Jesus, 38 anos, num camburão, atiraram uma bomba
de gás lá dentro e se certificaram de manter as portas
do carro fechadas enquanto o observavam urrar e se
debater até não ter mais forças. A cada dia fica mais
vasto o cardápio à disposição dos agentes públicos
'brasileiros dispostos (e incentivados) amatar uma parte
bem específica da população. Deixar de comprar
vacinas disponíveis contra uma doença letal,
descarregar armas de fogo, sufocar com gás... A cada
dia fica mais ensurdecedor o silêncio do esporte.

Steve Kerr usou a atenção que o esporte naturalmente
atrai para fazer a colossal audiência da NBA pensar em
algo mais importante do que o jogo. Seu time entrou em
quadra, a bola não deixou de rolar, mas o papel social
do esporte foi cumprido com dignidade. Astros do
basquete endossaram a mensagem do treinador e o
vídeo com seu desabafo acabou por viralizar - não
poderia haver verbo ao mesmo tão adequado e tão
mordaz para definir o que faz sucesso no ambiente
envenenado das redes sociais.

Aqui? A indústria do esporte -imprensa incluída - olha
para o outro lado até quando seus próprios
protagonistas são vítimas da violência. Amanhã tem
final da Champions League. Domingo tem Fla-Flu. E na
semana que vem este mesmíssimo espaço estará
ocupado com alguma bobagem sobre futebol. Enquanto
isso, gente vai continuar morrendo de vírus, fome, tiro
ou gás. Alguém poderia fazer como Steve Kerr e, pelo
menos, dar um tapa na mesa.
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