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(Antfer) #1

Demonizar o Outro


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Jornal Folha de S. Paulo/Nacional - Opinião
sexta-feira, 27 de maio de 2022
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Claudia Costin


Num artigo recente da revista The Atlantic, Anne
Applebaum faz menção ao terrível inverno de 1932-33
na Ucrânia, quando Stálin ordenou uma busca por
víveres nas casas dos camponeses. Sementes, pães,
gado e trigo foram confiscados e uma grande fome se
espalhou na região. Anos depois, membros das
brigadas envolvidas, como Viktor Kravchenko,
descreveram o triste episódio, mostrando como o jargão
político ajudou a mascarar o que, de fato, eles fizeram.


Falava-se, segundo ele, da ameaça "kulak", para evitar
dotar os camponeses ucranianos pobres, de quem
roubavam a comida, de humanidade, de forma a
esconder deles mesmos o que estavam fazendo. Até o
grande escritor russo do período, Vasily Grossman,
colocou na boca de um personagem palavras que
denotavam um arrependimento tardio por ter retirado a
humanidade dos kulaks e ter deixado seu coração
congelar.


Ao ler o texto, lembrei-me de episódios em que o
mesmo processo de desumanização ou demonização


do outro ocorre por aqui. Afinal, a destruição do
adversário é mais fácil se não precisarmos argumentar,
ouvir suas teses e explicitar os motivos da discordância.
Desqualificar o adversário, atribuir-lhe epítetos, em
tempos de polarização política e de antecipação de
campanhas eleitorais, elimina o esforço de pensar.

Da mesma maneira, estigmatizar um grupo social ou
étnico também facilita a prática da exclusão, por meio
de eufemismos usados para esconder de nós mesmos o
que estamos fazendo. Pior ainda, a sociedade incorpora
e fornece argumentos para o que Silvio Almeida
descreve com precisão como racismo estrutural, em seu
livro de mesmo título, cristalizando regras que
naturalizam e facilitam a falta de acesso de grupos
étnicos inteiros.

Novamente, aqui aparece a ideia de que o percebido
como outro não partilha a mesma condição humana que
os "eleitos". Nesse sentido, não haveria necessidade de
explicar por que eles estariam sendo excluídos. Apenas
não teriam "mérito" suficiente.

Nessa mesma edição da The Atlantic, Catlin Dickerson
reporta a saga dos refugiados ucranianos na Polônia e
registra a nem sempre sutil discriminação étnica entre
os que lá buscam asilo, entre eles um nigeriano que
viveu boa parte de sua vida na Ucrânia, onde foi
completar seus estudos. Alguns voluntários tiveram que
brigar com guardas dos dois lados da fronteira para
permitir-lhe acesso ao país vizinho.

A desqualificação do outro, afinal, assume várias
formas. Mas, aqui também, a educação pode ajudar,
formando cidadãos aptos a viver na diversidade, a
enxergar a humanidade no outro e a debater visões
divergentes com profundidade.

COLUNISTAS

Assuntos e Palavras-Chave: Cenário Político-
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