Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

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10 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019


Motosserras brasileiras


contra enxadas tricolores


Mesmo entre os adversários do presidente brasileiro, a disputa excessivamente midiatizada com seu colega francês
suscita sentimentos ambíguos. Para impedir Jair Bolsonaro de entregar a Amazônia para o agronegócio, é preciso
questionar o princípio da soberania territorial dos Estados, como sugere Emmanuel Macron?

POR RENAUD LAMBERT*

POR UM DIREITO À INGERÊNCIA CLIMÁTICA


A


presentar-se como adversário
privilegiado de homólogos es-
trangeiros qualificados como
“iliberais” é um exercício ao
qual se dedica, com prazer, o presi-
dente francês, Emmanuel Macron.^1
Primeiro foi o primeiro-ministro hún-
garo, Viktor Orbán, depois o dirigente
da Liga Norte italiana, Matteo Salvini.
Os incêndios que devastam a floresta
amazônica desde meados do ano lhe
oferecem um novo adversário com
perfil ideal: o presidente brasileiro de
extrema direita, Jair Bolsonaro, misó-
gino, homofóbico e cético com rela-
ção ao clima. Quando, no final de
agosto, a revista Science estabeleceu a
ligação entre as nuvens de fumaça que
escureceram o céu brasileiro até São
Paulo e a política de desflorestamento
estimulada por Brasília,^2 Macron su-
geriu conferir “um status internacio-
nal à floresta amazônica, caso os diri-
gentes tomassem decisões nocivas
para o planeta”.^3
Uma f loresta milenar salva das
motosserras pela mobilização de to-
dos aqueles que ela protege? Nos dis-
cursos que vêm do Élysée, o mundo
se parece um pouco com o planeta
Pandora, imaginado por James Ca-
meron em seu filme Avatar (2009), no
qual o presidente francês encarnaria
uma versão terrestre da resistência
dos Na’vis, esse povo com a pele azu-
lada que encantou as salas escuras.
Infelizmente, mesmo formulada por
um Emmanuel Macron usando um
colete azul-claro, a proposta não con-
seguiu entusiasmar todos os brasilei-
ros – nem mesmo os que se opõem a
Bolsonaro. Alguns não se esquece-
ram dos mil e um projetos que já
ameaçaram privar o país de sua sobe-
rania nesse espaço rebatizado Hileia
pelo naturalista alemão Alexander
von Humboldt (1769-1859) – planos
nos quais ecoa a ambição de Macron.
No século XIX, o oceanógrafo e
meteorologista Matthew Fontaine
Maury (1806-1873), diretor do Obser-
vatório Naval de Washington, propôs
resolver definitivamente a questão ra-
cial nos Estados Unidos colonizando a

gurança nacional ao autorizarem a
criação de um instituto internacional
na ‘zona de defesa natural’ da Amazô-
nia”.^6 Na linha de frente das críticas
estava o ex-presidente Artur Bernar-
des, que, na tribuna da Câmara dos
Deputados, em 24 de janeiro de 1950,
chamou a atenção para a ameaça de
ver a floresta transformada em “con-
domínio das nações”, que acabariam
“dividindo a região em colônias”.^7
O IIHA não teve êxito, mas surgi-
ram outras ideias. Uma das mais fan-
tasiosas emanou do Instituto Hudson,
com sede em Washington. Em 1967, o
futurólogo Herman Kahn, seu diretor,
sugeriu fazer uma barragem no Rio
Amazonas para criar um “grande lago
continental” que facilitaria a circula-
ção entre os países limítrofes e permi-
tiria produzir quantidades colossais
de energia. “Absurdo”, rebateu o geó-
grafo Hervé Théry: “Seria preciso uma

Amazônia para deslocar para lá a po-
pulação negra. Sua estratégia consis-
tia, num primeiro momento, em rei-
vindicar a simples “abertura” do Rio
Amazonas à navegação. “Toda a im-
prensa adere à campanha. Escravo-
cratas, fabricantes de armas, comer-
ciantes e corsários se mobilizam para
defender o que Maury apresenta co-
mo uma política do comércio em prol
da ciência”, narra o historiador Luiz
Alberto Moniz Bandeira.^4 No entanto,
em 1849, o representante do Brasil em
Washington (equivalente a embaixa-
dor) soa o alarme. A autorização de
navegar no Amazonas “abriria a porta
para feitorias norte-americanas, para
uma imigração maciça e, consequen-
temente, para uma manobra seme-
lhante àquela que permitira [a
Washington] meter a mão no Texas”.
Uma correspondência de Maury data-
da de 1853 e revelada pela imprensa

brasileira^5 comprova que essas inquie-
tações não são infundadas. “Tentemos
convencer nossos interlocutores pela
via diplomática, pois talvez seja possí-
vel obter a abertura [da Amazônia] de
modo pacífico”, escreveu o ex-oficial
antes de precisar seu método: “Em paz
se pudermos, à força se precisarmos”.
No entanto, o projeto não teve êxito.
Cerca de um século depois, em
1948, a Organização das Nações Uni-
das para a Educação, a Ciência e a Cul-
tura (Unesco) criou o Instituto Inter-
nacional da Hileia Amazônica (IIHA).
Inicialmente concebido como um
centro internacional de pesquisa em
ciências naturais, ele evoluiu “ao fazer
do desenvolvimento econômico da
região amazônica um importante eixo
de [sua] ação”, diz Malcolm Hadley,
pesquisador da Unesco. Os partidá-
rios brasileiros da estrutura foram, en-
tão, “acusados de comprometer a se-

© Claudius

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