Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

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OUTUBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 11


barragem de vários quilômetros, e a
elevação das águas submergiria boa
parte da população da Amazônia”.^8 No
entanto, a proposta foi levada muito a
sério pelos militares, no poder depois
do golpe de Estado de 1964, e os esti-
mulou a formular sua doutrina sobre a
floresta: “Integrar para não entregar”.
A ditadura se lançou, então, em
uma série de projetos faraônicos des-
tinados a ocupar um espaço conside-
rado vazio. Entre eles, o mais emble-
mático ganhou a forma de uma
rodovia que deveria estender uma fai-
xa de asfalto de mais de 4 mil quilôme-
tros entre a cidade de Cabedelo, no
Nordeste, e o município de Lábrea,
próximo da fronteira com a Bolívia. Ja-
mais inteiramente acabada, a obra foi,
no entanto, inaugurada em 1972, com
a promessa de facilitar o acesso dos
mais pobres, evitando ao mesmo tem-
po uma reforma agrária, recusada pe-
los militares. “Homens sem terra para
uma terra sem homens”, salientava a
propaganda oficial.
Paradoxalmente, essa afirmação
sobre o domínio brasileiro do espaço
amazônico facilitou a abertura eco-
nômica do país pela qual Brasília tra-
balha. Compreendida como uma re-
serva inesgotável de riquezas, a
grande floresta deveria permitir atrair
as multinacionais, detentoras de ca-
pitais e da tecnologia de ponta que o
Brasil não tinha.
Garantir a soberania nacional do
território, a fim de poder entregá-lo
aos apetites estrangeiros: o projeto
dos militares parecia contraditório,
fragilizando a principal responsabili-
dade que tinham fixado – garantir a se-
gurança do país – com o pretexto de
trabalhar pelo que haviam reivindica-
do ao tomar o poder – favorecer seu
desenvolvimento. Oportunamente, a
Guerra Fria veio apagar essa dificulda-
de, levando à ligação das fronteiras
geográficas a outras, ideológicas. A
pesquisadora Ana Cristina da Matta
Furniel explica: “O mundo estava divi-
dido entre o Ocidente cristão e o
Oriente comunista. Isso permitia que
as Forças Armadas resolvessem dois
problemas: o da segurança (aliando-se
ao mundo ocidental) e o do desenvol-
vimento (por meio dos investimentos
privados provenientes do Ocidente)”.^9
Assinar contratos com multinacionais
e perseguir a guerrilha combatente re-
sultava da mesma ambição: a defesa
da soberania brasileira.
A volta à democracia, em 1985,
ocorreu em um contexto internacio-
nal marcado pela emergência de preo-
cupações ligadas ao meio ambiente e
aos direitos das populações indígenas.
A nova Constituição trouxe essa marca
em seu artigo 231, que estipula que
“são reconhecidos aos índios [...] os
direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competin-

do à União demarcá-las, proteger e fa-
zer respeitar todos os seus bens”. O as-
sassinato, em 1988, do sindicalista
Francisco Alves, conhecido como Chi-
co Mendes, que defendia os direitos
dos trabalhadores encarregados de
extrair o látex nas plantações de serin-
gueiras, desencadeou uma campanha
internacional apoiada por personali-
dades artísticas, como Paul McCart-
ney. Enquanto, no mesmo momento,
diferentes estudos estabeleciam que,
nos anos 1970, 10 milhões de hectares
da floresta amazônica haviam sido
convertidos em pastos,^10 choviam rea-
ções internacionais. “Ao contrário do
que pensam os brasileiros, a Amazô-
nia não lhes pertence, e sim a nós”, de-
clarou o senador e futuro vice-presi-
dente norte-americano, Al Gore, em


  1. E o presidente francês, François
    Mitterrand, reforçou: “O Brasil deve
    aceitar uma soberania relativa da
    Amazônia”.^11


Com o passar do tempo, os gover-
nos democráticos tentaram desarmar
o que eles continuaram a interpretar
como uma forma de avidez estrangei-
ra integrando as questões ambientais
e indígenas à sua agenda. O primeiro
ministério brasileiro inteiramente de-
dicado ao meio ambiente foi criado
em 1992. Poucos meses antes da Cú-
pula da Terra no Rio, que ocorreu no
mesmo ano, o presidente Fernando
Collor de Mello anunciou a criação de
um território Yanomami de 9,4 mi-
lhões de hectares. Com a política de
desenvolvimento do Brasil declaran-
do-se “sustentável” e respeitosa das
populações autóctones, era inútil ima-
ginar usurpar sua soberania, explica-
va-se substancialmente em Brasília.
De volta aos quartéis, as Forças Ar-
madas continuavam inquietas. Elas
consideravam que as reservas indíge-
nas constituíam o prelúdio de uma
“balcanização” da Amazônia que daria
origem a pequenas ilhas indígenas “fa-
cilmente manipuláveis pelos países ri-
cos”. No que dizia respeito à exigência
ecológica, ela facilitaria o surgimento
de “normas internacionais distancia-
das do velho princípio de igualdade de
direito entre os Estados, de não inter-
venção e de autodeterminação dos
povos”.^12 O inimigo do passado teria,
então, trocado o vermelho pelo verde,
os fuzis pelas ONGs; com isso a amea-
ça não teria desaparecido. Em 10 de
dezembro de 1991, o ex-ministro do

Exército, Leônidas Pires Gonçalves,
explicou ao jornal Folha de S.Paulo
que o secretário de Estado para a eco-
logia lhe inspirava “o mesmo ódio que
ele tinha sentido outrora pelo dirigen-
te comunista Luís Carlos Prestes”.
Ao nomear Ricardo Salles, ex-dire-
tor da Sociedade Rural Brasileira (um
bastião do ruralismo), para o posto de
ministro do Meio Ambiente, Bolsona-
ro vai ao encontro da visão de seus
amigos militares. Foram esquecidos
os discursos de seus predecessores so-
bre o desenvolvimento sustentável e a
promessa de proteger o meio ambien-
te: aos seus olhos, a Amazônia é uma
fonte de riquezas a ser defendida para
dela tirar lucro. Uma postura como es-
sa facilita a volta dos refrãos holísti-
cos... e das suspeitas. De fato, não se
ignora em Brasília que todas essas
grandes forças que consideram a pro-
teção da natureza prioritária para os
países do Sul evitam, na maior parte
das vezes, o fardo de fazê-la. Sem con-
tar que, em 2007, a “comunidade in-
ternacional” ignorou a proposta feita
por Quito de proteger o Parque Nacio-
nal Yasuni na Amazônia do Equador
em troca do pagamento da metade
das somas que deixaria de arrecadar
com sua exploração.^13 A aversão que
milhões de brasileiros sentem por
Bolsonaro os leva, no entanto, a iden-
tificar as questões de seu presidente a
uma besteira paranoica.
Argumentando que a destruição
da Amazônia é um “problema mun-
dial” e se opondo a qualquer pessoa
que declare que “isso só concerne a
ela” (Twitter, 26 ago. 2019), Macron
planeja apresentar, na Conferência
de Santiago de 2019 sobre as mudan-
ças climáticas (COP 25), uma “estra-
tégia de longo prazo” visando asse-
gurar “o bem-estar das populações”
amazônicas e garantir “um desen-
volvimento sustentável e ecológico”
na região.^14 Assim, vemos emergir
novamente a ideia de um direito de
ingerência climática calcado neste,
humanitário, que justificou as inter-
venções militares ocidentais na So-
mália (1992), no Haiti (1994), na ex-
-Iugoslávia (1999)...
“O Conselho de Segurança das Na-
ções Unidas poderia [...] avaliar que,
contribuindo para a mudança climáti-
ca, a destruição da floresta amazônica
constitui uma ameaça à paz e à segu-
rança internacionais, permitindo-lhe
adotar reações coercitivas”, imagina o
diretor do Institut de Recherche Stra-
tégique de l’École Militaire (Irsem),
Jean-Baptiste Jeangène Vilmer, nas co-
lunas do Le Monde de 27 de agosto de


  1. “[Se a hipótese de um] uso da
    força – uma intervenção militar para
    estabelecer um perímetro de proteção
    e impedir o desflorestamento, por
    exemplo – parece burlesca, perigosa e,
    na verdade, certamente contraprodu-


tiva, não se pode excluir que, numa si-
tuação semelhante dentro de dez ou
vinte anos, se a disputa for considera-
da vital, a questão acabe se impondo.”
Bastará acabar com o nacionalismo
reacionário das Forças Armadas para
reagir às ameaças que as preocupam?
Em 2000, durante um debate em
uma universidade norte-americana,
Cristovam Buarque, então dirigente
do PT, foi interrogado por um estu-
dante sobre a ideia de internacionali-
zar a Amazônia. Sua resposta conti-
nua famosa no Brasil: “Se os EUA
querem internacionalizar a Amazô-
nia, pelo risco de deixá-la nas mãos de
brasileiros, internacionalizemos to-
dos os arsenais nucleares dos EUA. Até
porque eles já demonstraram que são
capazes de usar essas armas, provo-
cando uma destruição milhares de ve-
zes maior do que as lamentáveis quei-
madas feitas nas florestas do Brasil”.^15

*Renaud Lambert é jornalista do Le Mon-
de Diplomatique.

1 Ler Serge Halimi e Pierre Rimbert, “Libéraux
contre populistes, un clivage trompeur” [Libe-
rais contra populistas, uma clivagem falaciosa],
Le Monde Diplomatique, set. 2018.
2 Cf. Herton Escobar, “There’s no doubt that Bra-
zil’s fires are linked to deforestation, scientists
say” [Não há dúvida de que os incêndios no Bra-
sil estão ligados ao desflorestamento, dizem os
cientistas], Science, Washington, 26 ago. 2019.
3 Agence France-Presse (AFP), 29 ago. 2019.
4 Luiz Alberto Moniz Bandeira, Presença dos Es-
tados Unidos no Brasil, Civilização Brasileira,
Rio de Janeiro, 2007. As informações e cita-
ções do próximo parágrafo também são extraí-
das dessa obra.
5 Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 12 set. 1853.
6 Malcolm Hadley, “La nature au premier plan.
Les premières années du programme environ-
nemental de l’UNESCO, 1945-1965” [A natu-
reza no primeiro plano. Os primeiros anos do
programa ambiental da Unesco, 1945-1965].
In: Collectif, Soixante ans de science à l’UNES-
CO, 1945-2005 [Sessenta anos de ciência na
Unesco, 1945-2005], Unesco, Paris, 2009.
7 J. Taketomi, “Artur Bernardes, a luta contra os
EUA e a internacionalização da Amazônia”, 24
set. 2017. Disponível em: <www.portaldoholan-
da.com.br>.
8 “Pourquoi l’Amazonie? Présentation d’une re-
cherche et d’un espace” [Por que a Amazônia?
Apresentação de uma pesquisa e de um espa-
ço], Bulletin de l’Association de Géographes
Français, n.441-442, Paris, mar.-abr. 1977.
9 Ana Cristina da Matta Furniel, “Amazônia. A
ocupação de um espaço: internacionalização ×
soberania nacional (1960-1990)”, dissertação
de mestrado em relações internacionais, PUC-
-Rio, 14 dez. 1993.
10 Ibidem.
11 Citado por Chantal Rayes, “Amazonie: Bolso-
naro répond à la pression internationale” [Ama-
zônia: Bolsonaro responde à pressão interna-
cional], Libération, Paris, 24 ago. 2019.
12 Documentos da Escola de Comando e Estado-
-Maior do Exército publicados em 1998 e 2001
e citados por Adriana Aparecida Marques em
“Amazônia: pensamento e presença militar”, tese
de doutorado em Ciência Política, USP, 2007.
13 Ler Aurélien Bernier, “En Équateur, la biodiver-
sité à l’épreuve de la solidarité internationale”
[No Equador, a biodiversidade colocada à pro-
va da solidariedade internacional], Le Monde
Diplomatique, jun. 2012.
14 Silvia Ayuso, “El G7 moviliza 18 millones para
combatir el fuego en la Amazonia” [O G7 mobi-
liza 18 milhões [de euros] para combater o fogo
na Amazônia], El País, Madri, 26 ago. 2019.
15 “A internacionalização do mundo”, O Globo,
Rio de Janeiro, 10 out. 2000.

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nacional do território, a
fim de poder entregá-lo
aos apetites estrangei-
ros: o projeto dos milita-
res parecia contraditório

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