12 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019
O homem que
prometia virar a página
do “populismo” jogou
a Argentina na crise
econômica. O fracasso
de Mauricio Macri deve
facilitar o retorno dos
peronistas ao governo nas
eleições de 27 de outubro.
Herdando um país
devastado, a dupla singular
que assumirá o poder vai
precisar unir seu campo,
superando divisões
POR JOSÉ NATANSON*
GOVERNO MACRI: AS MESMAS RECEITAS, OS MESMOS RESULTADOS
N
a manhã do dia 18 de maio de
2019, o telefone celular de Al-
berto Fernández começou a to-
car de maneira frenética. Em
menos de dez minutos, seu WhatsA-
pp acusa uma centena de novas men-
sagens. Os alertas incessantes do
aplicativo se somam aos de SMS, que
também soam com uma regularida-
de de metrônomo. Nesse dia, como se
executassem uma coreografia espon-
tânea, os pré-candidatos peronistas
às eleições presidenciais de outubro
anunciam a retirada de suas candi-
daturas, enquanto os governantes,
que até então guardavam um silêncio
prudente, tomam finalmente a pala-
vra. Seguidos por vários dirigentes
sindicais, donos de empresas e inte-
lectuais mais ou menos proeminen-
tes, todos decidiram apoiar o mesmo
candidato: o homem do telefone
requisitado.
Esse sopro de união veio depois de
uma declaração inesperada, alguns
minutos antes, que acabava de mu-
dar o curso das eleições. As palavras
pronunciadas não por Alberto Fer-
nández, mas por Cristina Fernández
- com quem não guarda nenhum pa-
rentesco. A personalidade política
mais popular do país, viúva do ex-
-presidente Néstor Kirchner (2003-
- e ela mesma presidenta de 2007
a 2015, líder do polo peronista mais
poderoso, pegou todos de surpresa
em seu Twitter: “Pedi a Alberto Fer-
nández que encabece uma chapa co-
mum, ele candidato à presidência, e
eu, à vice-presidência”.
A LISTA “JANE AUSTEN”
Até aquele momento, a campanha se
anunciava como um duelo entre
Cristina Fernández e o presidente li-
beral Mauricio Macri, eleito em 2015.
Se a dirigente peronista podia contar
com o apoio de um terço do eleitora-
do, ela deveria, por outro lado, en-
frentar a rejeição do outro terço. Na
origem dessa fratura, ou grieta como
falam na Argentina, um conf lito en-
tre a chefe de Estado e o setor agrário
que remonta a 2008.
Pouco depois de tomar as rédeas
do país em março de 2008, Cristina
anunciou o aumento do imposto so-
bre a exportação de cereais, chamado
de “retenções”.^1 Como outros países
da região, a Argentina exporta princi-
palmente matérias-primas, notada-
mente soja, da qual é a segunda maior
exportadora mundial. Enquanto as
cotações ultrapassavam US$ 600 a
tonelada (contra US$ 300 em setem-
bro de 2019), Cristina considerou que
era chegada a hora de captar uma
parte maior da “hiper-renda” tocada
pelo patronato agrícola. Tratava-se
de dotar o Estado de novos recursos
para desenvolver suas políticas so-
ciais e apoiar a indústria, raquítica.
Convencida de que poderia atacar
os últimos enclaves feudais obsole-
tos, a presidenta não antecipou a rea-
ção que desencadearia – um erro –,
pois o setor agrário, el campo, mu-
dou: dinâmico, intimamente ligado
aos mecanismos da globalização,
atravessado por f luxos de capitais in-
ternacionais, não é composto apenas
de grandes famílias oligárquicas,
mas também de uma classe média
rural que se relaciona diretamente
com os setores financeiros e os gran-
des meios de comunicação privados.
Durante três meses, el campo cortou
as estradas e ameaçou mergulhar as
cidades na penúria. A batalha termi-
nou no Congresso.
Cristina conseguiu restaurar sua
popularidade o suficiente para ser
reeleita em 2011, mas a fratura per-
maneceu profunda. A reforma fiscal
pretendida era uma nova manifesta-
ção de um conf lito histórico mais an-
tigo. De um lado, as forças associadas
ao “primeiro peronismo” (1945-1955)
e atualmente representadas pelo kir-
chnerismo. Com apoio em grandes
periferias urbanas, nas províncias
empobrecidas do norte e na Patagô-
nia, entre trabalhadores e pobres, e
igualmente entre classes médias pro-
gressistas e jovens, essa corrente de-
fende um modelo econômico favorá-
vel à indústria, ao desenvolvimento
do mercado interno e ao aumento dos
salários e a emergência de um Estado
forte. De outro lado, o liberalismo
clássico, atualmente encarnado pelo
presidente Mauricio Macri, último
avatar do antiperonismo. Sua base
social está no setor agrário exporta-
dor e nos bairros mais abastados das
grandes cidades. Seu projeto: menos
impostos, menos Estado, mais desre-
gulação e mais mercado. Um Ronald
Reagan que dança tango, em resumo.
Cada um desses dois polos crista-
liza um terço dos votos. Entre eles,
um centro “f lutuante”, sem fidelida-
de política, decidiu o resultado do
pleito. Logo depois do conf lito com el
campo, Cristina adotou uma estraté-
gia para “assegurar o apoio do tercei-
ro terço, essa ‘minoria intensa’. Macri
fez o mesmo, mas o voto de um terço
da população permite apenas ganhar
as eleições e governar o país, não im-
pulsionar transformações profundas
e duráveis”, explica o jornalista Mar-
tín Rodríguez.
Daí a opção imaginada pela diri-
gente peronista para as eleições de
- Alberto Fernández aparece co-
mo moderado, com temperamento
conciliador e conhecido por sua
abertura – notadamente porque, de-
pois de ter sido chefe de gabinete de
Néstor Kirchner, e também de Cristi-
na, tomou distância desta última
após o conf lito social de 2008. Ao as-
sociar-se a ele hoje, Cristina espera
sair do núcleo kirchnerista e retomar
laços com as alas mais conservadoras
do peronismo, que a detestam.
A operação parece dar frutos: com
mais de 50% dos votos (contra 32%
para Macri), a chapa apelidada de
“Jane Austen” – por associar a razão
(Alberto) aos sentimentos (Cristina)
- ganhou as primárias de 12 de agos-
to de 2019. Resultado que, se olhado
pelas lições do passado, indica uma
vitória esmagadora nas eleições de 27
de outubro de 2019.
Homem de negócios riquíssimo e
próximo aos setores financeiros in-
ternacionais, Macri, em 2015, colo-
cou à frente seu savoir-faire, com o in-
A Argentina mostra que a
esquerda não está morta
@RIVA
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