Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 13


tuito de romper com o “populismo
kirchnerista”. Seu receituário não era
muito inovador: desregular a econo-
mia, liberar movimentações de capi-
tal e diminuir o Estado, fazendo vista
grossa ao mercado. Essas medidas,
associadas a uma reaproximação
geopolítica com grandes potências
ocidentais, garantiriam, segundo ele,
uma “chuva de investimentos” e um
salto nas exportações. Quatro anos
depois, os investimentos estrangei-
ros não chegaram, as exportações es-
tagnaram, e a Argentina amarga a
maior inf lação da América Latina de-
pois da Venezuela – e que deverá che-
gar a 55% em 2019.
O erro de Macri decorre de uma
visão equivocada do contexto inter-
nacional. Quando assumiu o cargo, o
mundo inteiro experimentava um
desaquecimento da economia, ca-
racterizado pelo retorno ao protecio-
nismo cujo pano de fundo é a guerra
comercial entre Washington e Pe-
quim. A demanda mundial de maté-
rias-primas caiu. O plano de Macri
havia sido concebido para um mun-
do que já não existia.
Privado dos motores econômicos
com os quais contava, o empresário
presidente se apoiou na dívida para
colocar seu programa em andamen-
to. Quando a via do mercado se fe-
chou, em maio de 2018, ele se voltou
para a única fonte de financiamento
disponível: o FMI. Para os argenti-
nos, que conhecem melhor que nin-
guém os custos dessa “ajuda” ofereci-
da aos países em dificuldade, o
Fundo é o equivalente a Belzebu.
Graças ao apoio do norte-americano
Donald Trump, com quem Macri
mantém uma relação amistosa de
longa data, Buenos Aires obteve um
programa de assistência financeira
de US$ 57 bilhões, a maior quantia já
desembolsada pelo FMI.

“SÓ MAIS UM
POUCO DE PACIÊNCIA”
Como de praxe, essa “generosidade”
permitiu estabilizar a economia por
alguns meses, antes de as condições
do empréstimo agravarem a crise. A
austeridade exigida pelo FMI causou,
dessa forma, o aumento dos índices
de pobreza para 34,1% da população,
enquanto o desemprego atinge uma a
cada dez pessoas. “O FMI transfor-
mou o impasse econômico em im-
passe social e, em seguida, em im-
passe político”,^2 analisa Claudio
Scaletta, economista e autor de um
livro que antecipa o caos atual.
Para Macri, as eleições primárias de
11 de agosto foram o golpe de miseri-
córdia. Após quatro anos no poder, sua
base social se reduziu ao terço indefec-
tível do antiperonismo. No dia seguinte
do escrutínio, o dólar disparou e os
poupadores correram para os bancos
para retirar seus depósitos. A inflação
aumentou novamente. O Banco Central
esgotou suas reservas para tentar de-
fender o peso, mas, à razão de US$ 1 bi-
lhão por dia, esses fundos rapidamente
se foram. E o queridinho dos mercados,
que havia prometido modernizar a eco-
nomia, viu-se obrigado a declarar mo-
ratória parcial e recorrer a uma medida
que ele mesmo considerava “populista”
antes de ser eleito: o controle cambial.

Como em 1989, depois em 2001, a
crise explodiu depois de uma desva-
lorização profunda e desordenada
que amputou os salários e mergulhou
a economia na recessão. Contudo,
contrariamente aos episódios prece-
dentes, a hecatombe econômica não
foi seguida de nenhuma explosão so-
cial. Nenhuma cena de pilhagem em
supermercado, nenhum edifício pú-
blico ocupado, nenhum enfrenta-
mento com a polícia. A capacidade de
organização dos movimentos sociais
e as políticas sociais direcionadas aos
mais pobres criadas por Kirchner e
sua esposa – de forma geral mantidas
por Macri – contribuíram para evitar
que o caos econômico evoluísse para
uma rebelião. As manifestações se
multiplicaram, mas acontecem de
forma relativamente calma. “O go-
verno Macri é nulo, mas eles vão sair
de lá, só mais um pouco de paciên-
cia”, resume Pedro Tapia, da Confe-
deração dos Trabalhadores de Econo-
mia Popular, diante de um mural que
repete suas palavras: “Eles se vão”.

Consciente de que o país está em
ruínas e que sua reconstrução levará
anos, Alberto Fernández tenta conter
a expectativa e a esperança de seus
apoiadores. Sua primeira missão será
renegociar a dívida do país junto ao
FMI, depois aos credores privados,
com o objetivo de conseguir uma
margem de manobra econômica. Se-
gundo os termos do acordo firmado
por Macri, a Argentina precisa depo-
sitar US$ 24 bilhões no Fundo em
2020 e US$ 31 bilhões no ano seguin-
te. Por enquanto, o peso da dívida
significa 100% do PIB, fardo incom-
patível com o programa de retomada
de Fernández.
No entanto, o peronista, em suas
negociações com o FMI, poderá contar
com um precedente recente: em 2005,
o governo de Néstor Kirchner – do qual
ele era chefe de gabinete – obrigou
seus credores a reduzir seus títulos em
70%, feito inédito na história. O novo
poder também disporá de outro argu-
mento consistente: de fato, 51% da ca-
pacidade de empréstimo do FMI foi
levantada na Argentina. O provérbio já
diz: quando se devem US$ 100 mil a
um banco, tem-se um problema;
quando se devem US$ 100 milhões,
quem tem um problema é o banco.
O contexto geopolítico será deter-
minante, principalmente o papel de-
sempenhado por Washington, que
dispõe de direito de veto no FMI. Fer-
nández promete estabelecer uma re-
lação “madura” com os Estados Uni-
dos: acabar com a sujeição de Macri,
mas sem romper laços. Assim como o
resto do subcontinente, a Argentina é
objeto de uma concorrência feroz en-
tre os gigantes norte-americano e
chinês, o que se traduz em uma dupla
dependência: no caso do primeiro,
em razão da inf luência que tem nos
organismos de crédito e fundos de in-
vestimento que detêm os títulos da
dívida argentina, e, no caso do se-
gundo, como principal cliente das
exportações locais e única (ou quase
única) fonte de financiamento de
obras de infraestrutura.
Um diplomata hábil poderia
transformar essa tensão em oportu-
nidade, jogando uma grande potên-
cia contra a outra para obter o melhor
de cada uma delas. Isso seria impor-
tante, dado que a América Latina não
é mais aquela do grande período kir-
chnerista (2003-2015). Na época, a
América do Sul era governada por di-
rigentes de esquerda comprometidos
em cooperar. Hoje, ela se divide em
direita e esquerda, liberais e protecio-
nistas, em estratégias de aproxima-
ção de grandes potências e tentativas
de fortalecer a integração regional.
Em resumo, seria delicado contar
com um continente fraturado.
“Macri enfraqueceu a economia, e
a primeira coisa a fazer é relançar seu

motor”, explica Matías Kulfas, ex-alto
funcionário kirchnerista e um dos
principais conselheiros de Alberto
Fernández. “Para conseguir reaque-
cer a economia, precisamos aumen-
tar o salário real, as aposentadorias,
as despesas públicas, mas com pru-
dência, para que a inf lação não se
eleve, e dentro de um pacto social en-
tre trabalhadores e empresários.” No
imaginário peronista, o empresário
sempre é um aliado dos trabalhado-
res em relação aos grandes proprietá-
rios de terra. Como a indústria é pou-
co competitiva para exportar, é
preciso desenvolvê-la dentro de um
Estado forte, salários altos e uma po-
lítica monetária contrária à exigida
pelo campo liberal.

Se a vitória presidencial de outu-
bro tiver uma margem superior a 20
pontos percentuais, Fernández terá
uma base sólida para peitar o FMI e
os credores do país. Isso também o
colocaria em evidência dentro de
uma ampla aliança peronista – pois
esse movimento não é um partido
clássico, com uma ideologia clara,
instituições formalizadas etc., é uma
formação heterogênea que agrupa os
governos conservadores das provín-
cias do norte, as grandes centrais sin-
dicais e os jovens progressistas de
centros urbanos. No centro desse
magma político em constante recom-
posição, o kirchnerismo ocupa um
lugar crucial, de modo que a sintonia
entre Alberto e Cristina Fernández
será decisiva para garantir seu suces-
so. Será necessário transformar o ca-
leidoscópio peronista em uma coali-
zão de governo e conciliar interesses
em geral divergentes, às vezes con-
traditórios. Alberto Fernández de-
pende do sucesso dessa empreitada
para remediar a profunda crise em
que o neoliberalismo mergulhou o
país em apenas quatro anos.

*José Natanson é diretor da edição ar-
gentina do Le Monde Diplomatique.

1 Para compreender o interesse desse imposto,
ler Renaud Lambert, “Qui arrêtera le pendule
argentin?” [Quem vai parar o pêndulo argenti-
no?], Le Monde Diplomatique, jan. 2019.
2 Claudio Scaletta, La recaída neoliberal. La in-
sustentabilidad de la economía macrista [A
recaída neoliberal. A insustentabilidade da
economia macrista], Capital Intelectual, Bue-
nos Aires, 2016.

Seu projeto: menos im-
postos, menos Estado,
mais desregulação e
mais mercado. Um Ro-
nald Reagan que dança
tango, em resumo

© Claudius

O provérbio já diz:
quando se devem US$
100 mil a um banco,
tem-se um problema;
quando se devem US$
100 milhões, quem tem
um problema é o banco

@RIVA


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