Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

14 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019


PERSISTÊNCIA DE UM APARTHEID ECONÔMICO


Na África do Sul, uma


terra saturada de sangue


No início de setembro, uma onda de violência xenófoba causou a morte de dez
trabalhadores imigrantes na África do Sul. Gigante econômico continental, o país é
corroído por suas desigualdades. O desemprego atinge 40% da população. Entre os
motivos de tensão social, a insolúvel questão agrária: ricos fazendeiros brancos ainda
detêm 75% das terras privadas do país

POR CÉDRIC GOUVERNEUR*, ENVIADO ESPECIAL

N


o campo verdejante do Kwazu-
lu-Natal, entre as plantações de
cana-de-açúcar e os elegantes
chalés, brotou uma pequena fa-
vela de barracos de barro e chapas de
ferro onduladas. Camponeses e suas
famílias trabalham no local para os
fazendeiros africâneres, ganhando
um salário mensal entre 1.500 e 3.
rands (R$ 420 a 840), abaixo do salário
mínimo, fixado em 3.500 rands (R$
980) em janeiro de 2019. Quase todos
são zulus, mas alguns, como os xho-
sas, vêm da província vizinha do Cabo
Oriental. Em 1981, esses camponeses
seguiram seu empregador quando ele

se instalou na região do Natal. Apo-
sentado em 2016, o fazendeiro “reven-
deu suas terras a outro branco. E ele
quer nos despedir”, resume David T.,
camponês zulu. O novo proprietário
chegou com seu advogado e ofereceu
às catorze famílias “50 mil rands [R$
14 mil] para que elas fossem embora.
Duas aceitaram”. Em seguida, amea-
çou aparecer com uma escavadora. “É
o nosso lar! Nossos antepassados fo-
ram sepultados aqui”, exclama David.
E aponta para o campo vizinho: “Seus
túmulos estão lá. Não podemos visitá-
-los porque o branco nos proíbe. Ar-
rancou as cruzes”.

Não há água corrente no local:
duas vezes por semana, um cami-
nhão da prefeitura vem encher a cis-
terna. Uma clínica móvel passa de
vez em quando... Para que ficar? “Pa-
ra onde iríamos?”, protestam em
uníssono os moradores. “Para um
gueto na cidade? Sob ameaça das
quadrilhas? Teríamos ainda menos
direitos sobre a terra! Vivemos aqui
há quarenta anos. Temos nossos di-
reitos”, diz Boniswa B., uma avó xho-
sa. Um táxi estaciona na frente do
barraco. Uma confusão de cabeças e
braços aparece nas janelas. Duas,
quatro, seis... No total, oito crianças

saem do veículo. “O CNA [Conselho
Nacional Africano] prometeu um
ônibus escolar pouco antes das elei-
ções. No entanto, ainda hoje, para es-
tudar, é preciso tomar um táxi até
Howick [cidade a 20 quilômetros].”

BUROCRACIA, CORRUPÇÃO
E CLIENTELISMO
Perto de três quartos dos 37 milhões
de hectares das terras sul-africanas
privadas se encontram em poder de
brancos, segundo uma auditoria go-
vernamental.^1 No total, 30 mil fazen-
das comerciais empregam cerca de
840 mil camponeses.^2 Diretora da As-
sociação para o Progresso Rural
(Afra), estrutura com sede em Pieter-
maritzburgo que ampara campone-
ses negros desde 1979, Laurel Oettle
pinta um quadro realista do mundo
agrícola sul-africano. “Os trabalha-
dores sazonais ficam sem salário du-
rante meses”, explica essa mulher
branca, igualmente ativa na promo-
ção da igualdade dos sexos. “Alguns
às vezes são pagos com produtos
agrícolas. Casos de abusos sexuais
não faltam. O acesso aos túmulos dos
ancestrais dá ensejo a conf litos.” Sem
contar que a mecanização da agricul-
tura agravou a situação dos trabalha-
dores negros, explica Ben Cousins,
professor da Universidade do Cabo
Ocidental e especialista em pobreza e
questões agrárias. “Hoje se calcula
um trabalhador agrícola por 2 hecta-
res, contra um por hectare em 1994.”
Bôer significa “camponês” em ho-
landês. Desde sua chegada, no século
XVII, os colonos africâneres se apos-
saram das terras. Essa espoliação se
institucionalizou após a Segunda
Guerra Anglo-Bôer (1899-1902),
quando vencedores e vencidos se re-
conciliaram à custa das populações
negras, antes de se tornarem cama-
radas de armas nas trincheiras da
Primeira Guerra Mundial.^3 Em 1913,
o Natives Land Act limitou a proprie-
dade fundiária dos “indígenas” a 7%
do território (ampliados para 13% em
1936). Quatro milhões de campone-
ses perderam então as terras que ain-
da possuíam. “O objetivo era ter uma
mão de obra barata”, lembra Tseliso
Thipanyane, presidente da Comissão
Sul-Africana dos Direitos Humanos
(SAHRC). “Os fazendeiros negros se
tornaram meeiros ou mineiros. Mi-
nha família era de Kroonstad [Estado
Livre de Orange] e foi expropriada.
Ninguém sabe o que sentimos ao per-
correr o país e contemplar essas ter-
ras...” Em 1912, o CNA foi criado prin-
cipalmente em reação ao Natives
Land Act, então em discussão. Esse
projeto se inscrevia em uma série de
medidas discriminatórias, entre as
quais a entrega, aos brancos, de car-
gos no setor mineiro. Em 1955, o ma-
nifesto do movimento, a “Carta da Li-

© Lilla Cruz

@RIVA


@RIVA

Free download pdf