Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 15


berdade”, reivindicava a partilha da
terra “entre aqueles que nela traba-
lham”. Mas, no início dos anos 1990,
o partido – como alguns outros – tro-
cou o socialismo pelo neoliberalismo
para captar as boas graças das insti-
tuições financeiras internacionais e
facilitar a obtenção de um compro-
misso com o último presidente do
apartheid, Frederik de Klerk.
Em 1996, o governo prometeu re-
distribuir 30% das terras em cinco
anos, na base do voluntariado. Duas
leis (Labour Tenants Act, LTA, 1996, e
Extension of Security of Tenure Act,
Esta, 1997) protegeram em teoria os
meeiros das expulsões e os autoriza-
ram a reclamar uma parte da terra
onde viviam. Mas, com o advento li-
beral, que sacraliza a propriedade
privada, elas revelaram seus limites:
em 2006, isto é, dez anos depois, ape-
nas 3,1% dos 87 milhões de hectares
em questão haviam sido redistribuí-
dos.^4 Em 2009, o governo de Jacob Zu-
ma^5 tornou o problema uma priorida-
de e criou o Departamento do
Desenvolvimento Rural e da Reforma
Agrária (DRDLR). Entretanto, as so-
mas alocadas nunca chegaram a 1%
do orçamento nacional.
Não há um preço a priori do hec-
tare. Os postulantes formulam uma
reclamação referente a determinadas
terras. Devem então enfrentar uma
burocracia que envolve cinco admi-
nistrações diferentes até ver seu pe-
dido aceito e um montante fixado pa-
ra a indenização do proprietário pelo
Estado. O caso a caso é de regra, dei-
xando livre curso à corrupção e ao
clientelismo. Especialista em ques-
tões agrárias da Universidade do Ca-
bo Ocidental, a professora Ruth Hall
descreve um fenômeno de “captação
em proveito das elites”: “Em inúme-
ros casos, as terras foram transferi-
das a pessoas ricas, e não a quem pre-
cisava delas”.^6

A QUEM INTERESSA
O STATUS QUO DESIGUAL?
Em dezembro de 2017, o CNA aprovou
uma medida que exigia a “expropria-
ção sem indenização” (EWC, na sigla
inglesa). Promovida pelos partidá-
rios do presidente Zuma – que renun-
ciaria em fevereiro de 2018 –, essa re-
solução pretendia frear o ímpeto
eleitoral dos Combatentes pela Liber-
dade Econômica (EFF, esquerda radi-
cal), mas também limitar a margem
de manobra do novo chefe de Estado,
Cyril Ramaphosa.
A postura deste último conse-
guiu, de início, acalmar o setor priva-
do: “A facção Zuma do CNA quer
aplicar a EWC. Mas o presidente fará
isso com o máximo de moderação
possível”, declarou em janeiro John
Purchase, diretor da Câmara do
Agronegócio (AGBIZ), que lembra

tanto cooperativas quanto bancos e
gigantes da indústria agroalimentar.
No entanto, já perto do escrutínio ge-
ral de maio de 2019, o presidente se
mostrou mais agressivo: no final de
março, em Ebenhaeser (Cabo Oci-
dental), entregou oficialmente 1.
hectares a algumas comunidades
khoi e griqua, expulsas nos anos


  1. Essa única indenização demo-
    rou duas décadas e custou ao Estado
    362 milhões de rands (R$ 102 mi-
    lhões). O presidente deixou então
    clara sua determinação: “É hora de
    restituir a terra a seus proprietários
    legítimos”. E advertiu os fazendeiros
    brancos: “Trata-se de um programa
    que vocês não poderão deter, ao qual
    não conseguirão resistir. Venham,
    por favor, trabalhar conosco. Deve-
    mos partilhar esta terra”. Cônscio da
    corrupção que até o momento havia
    caracterizado as restituições de ter-
    ras, prometeu: “Vamos prestar con-
    tas do último centavo”.^7


“Em 22 anos”, escreve o professor
Ben Cousins, “a reforma agrária pou-
co alterou a estrutura agrária da Áfri-
ca do Sul e só teve um impacto menor
nas condições da vida rural. De 8% a
9% das terras agrícolas foram trans-
feridas, e muitos pedidos de restitui-
ção não foram atendidos”.^8 Faltou
vontade política ao CNA. Instalado
no poder e, pela simples lógica demo-
gráfica, quase seguro de nele se eter-
nizar, o “partido dos libertadores”
perdeu o interesse pelas massas ru-
rais e voltou os olhos para a ascensão
da classe média urbana negra.
A questão agrária reaparece a ca-
da campanha eleitoral, mas ganhou
um impulso mais forte. De início,
houve o progresso da esquerda na-
cionalista negra (esquerda radical),
adepta das nacionalizações e dos
gracejos rancorosos sobre os sul-afri-
canos brancos. Os EFF, partido fun-
dado em 2013 por Julius Malema, ex-
-chefe da Liga da Juventude do CNA,
são a terceira formação política do
país, com 44 deputados após as elei-
ções gerais de maio de 2019, contra 25
na Assembleia cessante. Em um total
de quatrocentos deputados, o CNA
tem 230 cadeiras; a Aliança Demo-
crática (DA, centro-direita), 84; os
EFF, 44; o Partido Inkatha da Liber-

dade (IFP), 14; e a Frente pela Liber-
dade Mais (VF+, conservadores bran-
cos), 10. Andile Mngxitama,
ex-deputado dos EFF, lançou em 2016
um movimento ainda mais radical:
Negro Primeiro Terra Primeiro (Black
First Land First, BLF).
Segundo fator: as tensões no seio
do CNA. Em dezembro de 2017, en-
volvido em um caso de corrupção,
Zuma havia cinicamente atiçado o
rancor contra os fazendeiros brancos
para operar uma divergência, con-
tratando uma agência de relações
públicas britânica para inundar as
redes sociais com a hashtag
#WhiteMonopolyCapital.
“Ninguém sabe o que o governo
vai fazer”, suspira Rossouw Cillié, um
dos mais importantes fazendeiros
sul-africanos. “Se nossas terras fo-
rem expropriadas, deixaremos o país,
como muitos outros fizeram, partin-
do para a Austrália desde 1994. Sete-
centos camponeses trabalham para
mim em regime fixo, mil em caráter
sazonal. Eles também estão preocu-
pados.” Descendente de huguenotes
franceses chegados durante o século
XVII à África austral, Cillié é dono da
propriedade de Laastedrif, que pro-
duz frutas e legumes para o mercado
interno e a exportação. “São sete fa-
zendas, com um total de cerca de 20
mil hectares.” O homem se diz in-
quieto: “Quando se tira o capital inte-
lectual, tudo vem abaixo. Vejam o
que aconteceu no Zimbábue” – ou se-
ja, crise na produção e hiperinf lação
após a entrega de fazendas tomadas
de proprietários brancos, por Robert
Mugabe, a veteranos da guerra da in-
dependência e ao círculo próximo do
regime.^9 A maioria foi à falência – um
cenário catastrófico que, na África do
Sul, serve de advertência tanto a fa-
zendeiros quanto a autoridades... e
funciona como argumento de peso
para quem se apega a um status quo
desigual.
A aplicação da EWC exigirá tam-
bém uma emenda à Seção 25 da
Constituição de 1996, que proíbe ao
Estado expropriar, por utilidade pú-
blica, sem o pagamento de uma inde-
nização “justa e equitativa”. Essa mo-
dificação da lei fundamental supõe
uma maioria de dois terços no Parla-
mento... e, portanto, o apoio dos de-
putados do incontrolável Malema. “O
CNA está encostado na parede”, resu-
me Ruth Hall. “Sentou-se sobre o pro-
blema durante um quarto de século;
agora, tem de agir.”

QUESTÃO AGRÁRIA,
UMA BOMBA SOCIAL
“É deplorável que os direitos funda-
mentais sejam negados e a Constitui-
ção seja modificada por interesses
eleitorais”, suspira em Pretória Anne-
lize Crosby, responsável pela questão

agrária no seio do Agri SA, o sindicato
agrícola que agrupa as mais impor-
tantes fazendas comerciais exporta-
doras. “Defendemos uma reforma
agrária”, esclarece, ressaltando que
25 anos de promessas não cumpridas
atiçaram perigosamente as frustra-
ções. “É necessário enfrentar o pro-
blema antes que ocorram invasões de
terra.” O Agri SA continua, no entan-
to, se opondo à EWC: “Preferimos
parcerias público-privadas [PPP]”.
Defendidas pelos neoliberais, as PPP
se mostraram, todavia, caras e pouco
eficazes em outros lugares...^10 O pa-
tronato agrícola sul-africano, já en-
frentando uma das piores secas de
sua história,^11 acha que a EWC preju-
dicaria ainda mais sua saúde econô-
mica. Ainda que as terras mais férteis
fiquem de fora – o presidente Rama-
phosa deu garantias nesse sentido, a
fim, principalmente, de não pôr em
perigo a segurança alimentar –, “as
grandes fazendas, 15% do universo
agrícola, produzem 80% dos gêneros.
Visá-las terá um impacto sobre a se-
gurança alimentar. Toda a cadeia de
valor será afetada”. O Agri SA teme as
consequências do efeito cascata: a
desvalorização fundiária reduzindo
a produção e aumentando os preços
dos alimentos, a reavaliação do risco
antes do empréstimo pelos bancos
aumentando seus juros. “A incerteza
já causa impacto. Os investidores se
desinteressam do setor” – justamente
quando o presidente tenciona atrair
US$ 100 bilhões em investimentos
estrangeiros diretos (IDE) em cinco
anos, com a economia desaquecida
desde 2013. “A confiança nunca foi
tão baixa nos últimos dez anos”, ex-
plica Purchase. O diretor da AGBIZ
ressalta as incertezas ligadas à ques-
tão agrária, mas também a seca e até
o Brexit. “Os sul-africanos preferem
investir na Zâmbia. E isso não tran-
quiliza os investidores estrangei-
ros...” E adverte: “As dívidas do uni-
verso agrícola chegam a mais de 200
bilhões de rands [R$ 56 bilhões], 77%
relativas ao valor da terra”. Solapan-
do esse valor, a EWC poderia “pôr em
perigo todo o sistema bancário”.
Responsável pelo BLF, Mngxita-
ma nos recebe numa vila de um su-
búrbio elegante de Pretória. O portão
está aberto; a piscina, vazia; não há
água nem eletricidade. “Ocupamos,
há três anos, esta casa abandonada
por um bôer que se mudou para o es-
trangeiro”, explica ele, sorrindo. O
BLF põe em prática seu lema: “White
monopoly capital, we are coming for
you!” [Capital monopólico branco,
vamos acertar as contas com você!].
“Cresci numa fazenda. Quando ti-
nha 12 anos, o fazendeiro branco
correu atrás de mim com um bastão
porque eu havia me recusado a cha-
má-lo de bass [patrão]”, conta. “Dei-

“Quando tinha 12 anos,
o fazendeiro branco
correu atrás de mim
com um bastão porque
eu havia me recusado a
chamá-lo de bass
[patrão]”

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