Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

16 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019


xei os EFF porque eles se tornaram
direitistas. Essa EWC é uma farsa:
Ramaphosa fala em expropriar ape-
nas terras inúteis. Trata-se então de
expropriar sem expropriar, de um
discurso para conseguir votos sem
compensação, para que o acúmulo
de capital siga seu curso.” Ele descar-
ta o risco de crise em caso de expro-
priação: “Não me venham falar de
Armagedon econômico. A vida coti-
diana dos negros neste país já é um
Armagedon econômico!” Dias de-
pois dessa conversa, no final de ja-
neiro, um porta-voz do BLF causaria
escândalo ao comemorar no Twitter
a morte de quatro crianças brancas
no desabamento de uma escola.^12 Es-
se episódio é apenas um exemplo da
atitude dos membros do BLF.
“A questão da terra é emocional”,
afirma William Gumede, professor
da Universidade do Witwatersrand,
em Joanesburgo, e diretor executivo
do think tank Democracy Works Fou-
ndation. Ele denuncia o perigo de ar-
ruinar a agricultura comercial para
fazer justiça aos ancestrais espolia-
dos: “Tomo a terra de um fazendeiro
branco. Vingo-me. Mas, amanhã, fi-
carei de barriga vazia porque será ne-
cessário importar comida?”. Para al-
guns, invocar os princípios jurídicos
encerra oportunamente a discussão.
“A África do Sul não é o Zimbábue, é
um Estado de direito”, sustenta Neo
Masithela, presidente da importante
Associação dos Fazendeiros da África
do Sul (Afasa), que reúne cerca de 300
mil camponeses e meeiros. Masithela
defende a EWC e trabalha com as au-
toridades para pô-la em prática. “A
questão agrária é uma bomba-relógio
social”, previne. Insiste no fato de que
a EWC se cumprirá nos termos da lei,
sem ocupações ilegais de terras: “De-
vemos evitar o pânico e a fuga de ca-
pitais, como soubemos fazer em 1994
[na transição democrática]”.

UM TRUSTE QUE
NÃO INSPIRA CONFIANÇA
Outro fator complica ainda mais a
equação agrária: o caso das terras zu-
lus. De 1986 a 1994, a violência entre o
CNA e o IFP, do príncipe Mangosuthu
Buthelezi, chefe do bantustão zulu e
aliado do regime do apartheid, fez
milhares de mortos. O rei dos zulus,
Goodwill Zwelithini kaBhekuzulu
(sobrinho de Buthelezi), conseguiu,
três dias antes das primeiras eleições
multirraciais de 27 de abril de 1994, a
criação do Ingonyama Trust, geren-
ciado pelo Ingonyama Trust Board
(ITB). O ITB tem a seu cuidado 2,
milhões de hectares, onde vivem 4,
milhões de pessoas. Os testemunhos
que pudemos recolher revelam inú-
meros abusos. Em um casebre nos
confins da savana, não longe de
Ulundi, município do Inkatha, mo-

ram sete famílias, sem água corrente
nem eletricidade. Thokozani Ndawo
conta que ele e os seus trabalhavam,
durante o apartheid, para fazendei-
ros bôeres, conhecendo seu quinhão
de abusos e expulsões manu militari.
Em 1997, quando pensavam em rei-
vindicar essa terra, o ITB se apossou
dela e criou ali uma reserva natural:
“Ninguém nos avisou”, queixa-se
Ndawo, cujo rebanho deve agora par-
tilhar o pasto com as zebras e as gira-
fas introduzidas pelo truste. “Solta-
ram cobras. Ameaçam até trazer
leões. Mas nascemos aqui. Se partir-
mos, teremos ainda menos direitos.
O lugar para onde fôssemos perten-
ceria fatalmente a outra pessoa.” Sua
situação não difere em nada da situa-
ção dos meeiros das fazendas de
brancos. “Queremos a EWC, pois rei-
vindicamos esta terra!”
Oficial de polícia na reserva, Bon-
gani Zikhali precisou inscrever a pro-
priedade de família no ITB, a pedido
do chefe tradicional de sua aldeia:
“Pensei que fosse para nosso rei, para
os negócios tribais”. Mas o truste exi-
giu em seguida um aluguel de 3 mil
rands (R$ 840) por ano... O ex-policial
de físico imponente não se intimida e
explica que “só o medo” obriga os zu-
lus a pagar. Edward Mpeko possuía
uma cabana na costa. Depois de uma
briga com o chefe local, ela foi sa-
queada por bandidos. “O ITB se inte-
ressou por minha cabana. Especial-
mente porque não sou zulu, e sim
sotho...” A justiça acabou por lhe dar
razão, mas sem indenizá-lo. Perto de
Eshowe, os habitantes nos contaram
que tiveram de lutar para defender
suas terras, cedidas pelo ITB a um
grupo mineiro indiano sem nem se-
quer consultá-los. “Supõe-se que a
terra pertença à comunidade, mas na
verdade só o chefe decide”, esclare-
cem os aldeões. Um deles evoca, com
inveja, a Revolução Francesa de 1789.
Com sede em Pietermaritzburgo,
o Ingonyama Trust não atendeu em
nenhuma ocasião ao nosso pedido
de entrevista. Em 2017, após recolher
dezenas de testemunhos do mesmo
tipo, uma comissão de investigação
dirigida por Kgalema Motlanthe,
presidente da África do Sul de 2008 a
2009, declarou inconstitucional o In-
gonyama Trust Act e recomendou
sua dissolução. A isso o Inkatha,
cujos militantes costumam se mani-
festar brandindo azagaias, respon-
deu com ameaças. “Alguns à minha
volta estavam dispostos à guerra,
mas eu disse não”, declarou o rei
Zwelithini.^13 “O governo não vai que-
rer enfrentar esse truste feudal, esse
Estado dentro do Estado, a fim de
não correr o risco de uma guerra ci-
vil”, analisa um especialista no as-
sunto, que quer preservar o anoni-
mato por questão de segurança. A

criação do Ingonyama Trust é parte
do “grande compromisso de 1994”.
Pela mesma razão, “o Estado tolera a
existência de Orania ou de Vander-
kloof” – enclaves onde extremistas
bôeres armados até os dentes, nos-
tálgicos do apartheid, vivem em uma
autarquia.^14 Zwelithini conta com o
apoio do AfriForum, uma associação
de defesa dos direitos dos bôeres que
alega possuir 260 mil membros: “Te-
mos uma postura comum frente à
EWC”, nos confirma seu presidente,
Ernst Roets. Ruth Hall não se mostra
absolutamente surpresa com essa
aproximação singular: “O AfriForum
e o rei zulu são dois conservadores.
Não têm nenhuma consideração pe-
los direitos individuais”.

*Cédric Gouverneur é jornalista.
1 “Land audit report 2017” [Relatório de audito-
ria fundiária 2017], Ministério do Desenvolvi-
mento Rural e da Reforma Agrária, Pretória, 5
fev. 2018.
2 Ben Cousins, Amelia Genis e Jeanette Clarke,
“The potential of agriculture and land reform to
create jobs (policy brief 51)” [O potencial da
agricultura e da reforma agrária para criar em-
pregos (relatório da polícia 51)], Institute for
Poverty, Land and Agrarian Studies (Plaas),
Universidade do Cabo Ocidental, Cidade do
Cabo, out. 2018.
3 Martin Bossenbroek, L’Or, l’Empire et le Sang.
La guerre anglo-boer (1899-1902) [O Ouro, o
Império e o Sangue. A guerra anglo-bôer
(1899-1902)], Seuil, Paris, 2018.
4 Ward Anseeuw e Chris Alden, “From freedom
charter to cautious land reform – Politics of land
in South Africa” [Da carta de liberdade à refor-
ma agrária cautelosa – Política fundiária na Áfri-
ca do Sul], Universidade de Pretória, out. 2011.
5 Ver Sabine Cessou, “L’ANC, aux origines d’un
parti-État” [O CNA, nas origens de um partido-
-Estado], Le Monde Diplomatique, mar. 2018.
6 Ruth Hall e Tembela Kepe, “Elite capture and
State neglect: new evidence on South Africa
land reform” [O domínio da elite e a negligência
do Estado: novas evidências da reforma agrá-
ria na África do Sul], Review of African Political
Economy, v.44, n.151, Cidade do Cabo, 2017.
7 Thabo Mokone, “Land reform can no longer be
resisted – Ramaphosa” [A reforma agrária já
não pode ser detida], The Sunday Times, Joa-
nesburgo, 23 mar. 2019.
8 Ben Cousins, “Land reform in South Africa is
sinking. Can it be saved? ” [A reforma agrária
na África do Sul está afundando. Pode ser sal-
va?], Plaas, para a Fundação Nelson Mandela,
maio 2016.
9 Ver Colette Braeckman, “Bataille pour la terre
au Zimbabwe” [Luta pela terra no Zimbábue],
Le Monde Diplomatique, maio 2002.
12 Ver Marc Laimé, “Les partenariats public-pri-
vés sont nuisibles et minent la démocratie”
[As parcerias público-privadas são prejudi-
ciais e abalam a democracia], Carnets d’Eau,
8 set. 2007. Disponível em: <https://blog.
mondediplo.net>.
11 Na província do Cabo, essa seca teria diminuí-
do a produção agrícola em 20% e custado à
economia 5,9 bilhões de rands (R$ 1,7 bilhão).
Bureau for Food and Agricultural Policies,
B FA P.
12 Iavan Pijoos, “BLF to be reported to Human
rights commission over racist Hoërskol
Driehoek remarks” [BLF vai à comissão de di-
reitos humanos por causa das observações
racistas de Hoërskol Driehoek], The Sunday
Times, 3 fev. 2019.
13 Lwandile Bhengu, “Zulu king says he preven-
ted war over legal action against Ingonyama
Trust” [Rei zulu diz que evitou a guerra ignoran-
do ação legal contra o Ingonyama Trust], The
Sunday Times, Joanesburgo, 14 mar. 2019.
14 James Pogue, “The myth of white genocide”
[O mito do genocídio branco], Harper’s Ma-
gazine, Nova York, mar. 2019.

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