Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2019 Suplemento FAO (Nações Unidas) 17


N

ão estamos indo na direção correta. Um passi-
nho à frente, dois atrás. A luta contra a fome
no mundo é uma história de frustração para
uma geração, a nossa, que poderia – e deveria –
ser a primeira na história a conseguir erradicá-la.
Depois de várias décadas de queda continua-
da do número de pessoas que passam fome, essa
tendência positiva se inverteu novamente, con-
firmando a virada dos últimos três anos. E não
deixa de ser irônico que esse aumento tenha
ocorrido precisamente a partir de 2015, o mesmo
ano em que a comunidade internacional se com-
prometeu com sua erradicação para o ano de
2030, no marco dos denominados Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável firmados com toda
a pompa diplomática na Assembleia Geral das
Nações Unidas pelos mandatários de 194 países.
Os últimos dados da Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)^1
a respeito são contundentes e confirmam o incre-
mento dos últimos anos: um aumento lento, mas
constante, resultando atualmente em cerca de
820 milhões de pessoas que passam fome, o que
coloca claramente em dúvida o objetivo de fome
zero da agenda 2030.
A fome está aumentando em quase todas as
regiões africanas, o que torna o continente a re-
gião onde a subalimentação é a mais elevada pro-
porcionalmente: em torno de quase 20%. Também
cresce na América Latina e no Caribe, um retro-
cesso em uma região que havia vivido uma déca-
da dourada em termos de redução da fome e da
pobreza, situando-se agora em cerca de 7%. E na
Ásia há também um aumento contínuo desde
2010: atualmente, mais de 12% de sua população
encontra-se subalimentada.
Segundo os dados da FAO, a fome tem aumen-
tado em muitos países cuja economia tenha desa-
celerado ou se contraído, sobretudo em nações de
renda média. Dos 65 países onde foram mais in-
tensas as repercussões negativas das desacelera-
ções e recessões da economia na segurança ali-
mentar e na nutrição, 52 dependem em grande
medida de exportações ou importações de produ-
tos básicos primários. Essas desacelerações ou re-
cessões econômicas afetam negativamente de
forma desproporcional a segurança alimentar e a
nutrição onde as desigualdades são maiores. Sim-
plificando: as vítimas das periódicas crises econô-
micas são principalmente as camadas mais vul-
neráveis e desfavorecidas.
No passado, a FAO já tinha chamado a atenção
para como os conflitos e os fenômenos extremos

POR ENRIQUE YEVES*

do clima – as mudanças climáticas – agravam es-
sas tendências negativas; agora o organismo in-
siste na incidência da desaceleração econômica e
destaca que, “com o objetivo de proteger a segu-
rança alimentar e a nutrição, é fundamental dis-
por de políticas econômicas e sociais que comba-
tam os efeitos dos ciclos econômicos adversos
quando estes chegam, evitando ao mesmo tempo,
a todo custo, os cortes em serviços essenciais co-
mo saúde e educação. No entanto, a longo prazo,
isso somente será possível por meio de uma trans-
formação estrutural em favor dos pobres e inclu-
siva, especialmente em países que dependem em
grande medida de produtos básicos primários”.
De qualquer forma, como ficou claro nos últi-
mos anos e como os estudos empíricos têm de-
monstrado, um crescimento econômico sólido
não contribui necessariamente para reduzir a po-
breza e melhorar a segurança alimentar e a nutri-
ção. O crescimento econômico, embora seja neces-
sário, pode não ser suficiente se desacompanhado
de políticas claras de distribuição da riqueza. A
desigualdade de renda é um problema-chave em
nossos dias, pois cresce em quase metade dos paí-
ses do mundo, incluídos numerosos países de
renda média e baixa. Cabe destacar que várias
nações da África e da Ásia têm registrado um

grande aumento da desigualdade de renda nos
últimos quinze anos.
Em países onde a desigualdade é maior, as de-
sacelerações e recessões econômicas têm um efei-
to desproporcional nas populações de baixa ren-
da no que diz respeito à segurança alimentar e
nutricional, pois estas utilizam boa parte de seus
rendimentos para a compra de alimentos.
A FAO recomenda que sejam adotadas medidas em
duas frentes: primeiro, salvaguardar a segurança ali-
mentar e a nutrição por meio de políticas econômicas e
sociais que ajudem a contrabalançar os efeitos das desa-
celerações da economia, como garantir fundos para as
redes de seguridade social e o acesso universal à saúde e
à educação; segundo, enfrentar as desigualdades exis-
tentes em todos os níveis por meio de políticas multise-
toriais que permitam alcançar formas sustentáveis de
superar a insegurança alimentar e a má nutrição.
O outro grande paradoxo de nosso mundo
atual é que não é somente a fome que cresce. A
obesidade se converteu em uma praga que não di-
ferencia países ricos ou pobres, do Norte ou do Sul,
desenvolvidos ou não, nem as barreiras de gênero
ou idade. É uma ameaça perfeitamente globaliza-
da. O sobrepeso e a obesidade têm aumentado em
todas as regiões, sem exceção, com índices impres-
sionantes. Cerca de 2 bilhões de adultos – mais do
que o dobro do índice de famélicos – sofrem de
sobrepeso, assim como cerca de 207 milhões de
adolescentes e 131 milhões de crianças entre 5 e 9
anos: quase um terço dos adolescentes e adultos
com sobrepeso são também obesos.
Todo esse panorama incerto nos leva a concluir
que estamos cada vez mais longe de alcançar as
metas estabelecidas para 2030 de fome zero. Ao
contrário: desde que tal objetivo foi firmado, os da-
dos vão de mal a pior: 820 milhões de famélicos em
um planeta que produz quase o dobro do necessá-
rio são um escândalo moral, ético e econômico em
pleno século XXI de vanguarda tecnológica e capa-
cidade de produção sem precedentes. ■

*Enrique Yeves es Director de FAO en España.

1 FAO, El Estado de la Seguridad Alimentaria y la Nutrición en el
Mundo 2019.

Anexo diplô


FAO: El Estado de la Seguridad Alimentaria y la Nutrición en el Mundo 2019

1970 1975 1980 1985 1990 199 5 2000 2005 2010 2015 2020 (^20252030)
900
1000
950
850
800
750
Milhões de pessoas

820
EM AUMENTO
DESDE 2014
Número de^
pessoas subalimentadas
com a fome
Objetivo
para acabar
Número de pessoas subalimentadas no mundo
Fonte: FAO. 2018
A FOME NO MUNDO: UM PASSO
À FRENTE, DOIS ATRÁS
@RIVA
@RIVA

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