Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

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OUTUBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 23


TRANSNACIONAIS ALARMADAS COM A RIVALIDADE NA CÚPULA


Uma vez convertida à economia de mercado, a China
deveria ter se constituído em mais um elo das cadeias de
produção de uma economia global pilotada pelos Estados
Unidos e suas transnacionais. Mas a velocidade de seu
desenvolvimento preocupa os dirigentes norte-americanos.
Eles se empenham agora em esmagar uma concorrente
que surgiu mais rápido do que imaginavam e que ameaça
sua posição de superpotência hegemônica

POR PHILIP S. GOLUB*

E


m 26 de junho de 2016, Donald
Trump proferiu um importante
discurso anunciando o programa
econômico e comercial interna-
cional que aplicaria se fosse eleito. O
teor geral de sua proposta era uma crí-
tica dura aos políticos norte-america-
nos, acusados de “fazer uma política
agressiva de globalização [que] deslo-
cou nossos empregos, nossa riqueza e
nossas fábricas para o exterior”, con-
duzindo à desindustrialização e à
“destruição” da classe média nos Esta-
dos Unidos. Denunciando uma “classe
dirigente que venera mais o globalis-
mo do que o americanismo”, ele se re-
feriu ao Acordo de Livre Comércio da
América do Norte (Nafta), à Organiza-
ção Mundial do Comércio (OMC), às
práticas econômicas chinesas e ao
Acordo de Parceria Transpacífica
(TPP) como as principais causas do
declínio do setor industrial em seu
país. No processo, anunciou que reti-
raria os Estados Unidos do TPP, rene-
gociaria o Nafta, sancionaria a China


  • que considerava “manipular” o mer-
    cado de divisas – e tomaria medidas
    legais contra suas práticas comerciais
    “desleais”, aplicaria tarifas sobre as im-
    portações provenientes desse país e
    “usaria todos os poderes presidenciais
    legítimos para resolver disputas co-
    merciais [bilaterais]” com Pequim.^1
    Na época, poucos observadores le-
    varam a sério esse ataque verbal à glo-
    balização e à arquitetura institucional
    do comércio internacional. Afinal, a
    eleição de Trump parecia improvável.
    E, no caso de acidentalmente chegar
    ao poder, ele provavelmente seria tra-
    zido à razão pelo Tesouro dos Estados
    Unidos e pela constelação de atores
    econômicos que têm grandes interes-
    ses na preservação do “mercado livre”


global. As instituições de governança
econômica e de segurança construídas
pelos Estados Unidos a partir da Con-
ferência de Bretton Woods, em 1944,
com o objetivo de perenizar sua posi-
ção central, pesariam em sua tomada
de decisões. A voz dos segmentos mais
internacionalizados do capitalismo
norte-americano prevaleceria.
Essas condições estruturantes fa-
ziam pensar que nenhum presidente,
mesmo que fosse tão singular quanto
Trump, poderia se desviar muito das
políticas e estruturas que há muito as-
seguram a hegemonia dos Estados
Unidos. Mas essas hipóteses superes-
timaram o peso do capital na determi-
nação da trajetória do mundo e subes-
timaram o potencial político criado
pela ascensão da China, que os Esta-
dos Unidos hoje tentam ativamente
conter. Nascido da ideia de que a Chi-
na “representa uma ameaça funda-
mental a longo prazo”,^2 nas palavras
de Kiron Skinner, diretora de planeja-
mento político do Departamento de
Estado dos Estados Unidos, esse es-
forço está alterando a natureza das re-
lações internacionais e mudando o
curso da globalização.

QUANDO PEQUIM ERA UM ALIADO
A partir de 1991, o eixo central da polí-
tica internacional dos Estados Unidos
passou a ser a disseminação mundial
do modelo norte-americano de capi-
talismo de mercado. Sob o nome ge-
nérico de “Consenso de Washington”,
o Tesouro dos Estados Unidos e o FMI
puseram em curso um programa de li-
beralização, desregulamentação e pri-
vatização mundiais imposto no final
dos anos 1980 e início dos anos 1990
aos “países em desenvolvimento” en-
dividados, portanto vulneráveis, da

África subsaariana e da América Lati-
na. Após a crise financeira asiática de
1997-1998, os sistemas econômicos
dos novos países industrializados da
Ásia oriental e os dos países em desen-
volvimento da região também foram
questionados. Sob forte pressão exter-
na, as políticas industriais estatistas e
a proteção dos mercados domésticos
deram lugar, em graus variados, a um
recuo do Estado e a uma abertura ao
investimento internacional. A campa-
nha oficial, baseada mais em coerção
do que em persuasão, foi promovida
por empresas multinacionais e trans-
nacionais, que buscavam acesso a
mercados outrora fechados.
Para essas empresas, a queda da
União Soviética criou as condições de
uma segunda era de ouro do capitalis-
mo internacional, após aquela experi-
mentada no final do século XIX e in-
terrompida pela violência em massa
do século seguinte. Os Estados Unidos
tornaram-se a única grande potência
e, na década de 1990, os objetivos do
Estado e os objetivos do capital coin-
cidiram em um grau excepcional. Essa
configuração era comparável à sim-
biose entre o Estado imperial e o capi-
tal no auge da internacionalização
britânica, quando seus respectivos
objetivos de maximização do poder e
da riqueza estavam funcionalmente
ligados. Essa coincidência de interes-
ses levou o governo britânico a traba-
lhar para o capital (por meio da força
ou da ameaça de uso da força, se ne-
cessário, como na América Latina, na
China e no Egito) e fez os investidores
privados se dobrarem docilmente aos
imperativos estratégicos da política
imperial, quando a situação mundial
assim o exigia – por exemplo, no caso
da Rússia, onde os investidores foram
levados a compreender que o equilí-
brio de forças na Europa era mais im-
portante do que o lucro. De maneira
similar, o Estado norte-americano te-
ve um papel decisivo ao lado das em-
presas multinacionais e dos bancos
no estabelecimento e na difusão da li-
beralização mundial no final do sécu-
lo XX. Como escreve Stephen Walt,
professor de Relações Internacionais
em Harvard, os líderes dos Estados
Unidos “viram no poder incontestado
à sua disposição a oportunidade de
moldar o ambiente internacional, a
fim de melhorar ainda mais a posição
do país e colher mais vantagens no fu-
turo”, levando “o maior número possí-
vel de países a aderir a sua visão parti-
cular de uma ordem mundial
capitalista liberal”.^3
Na época, as elites políticas e eco-
nômicas dos Estados Unidos conside-
ravam a China mais como um aliado
do que como um rival, e certamente
não como uma ameaça. O país fora
um aliado, no final dos anos 1960 e du-
rante a década de 1970, no projeto de

contenção da União Soviética. As rela-
ções diplomáticas foram estabelecidas
em 1º de janeiro de 1979 e, menos de
um mês depois, Deng Xiaoping em-
barcou em uma viagem de nove dias
nos Estados Unidos para celebrar o
evento. Na ocasião, segundo o jorna-
lista Jonathan Steele, do The Guardian,
ele declarou que a China e os Estados
Unidos tinham “o dever de trabalhar
juntos [...] [e de] se unir contra o urso-
-polar”. Durante a cerimônia na Casa
Branca, a bandeira vermelha chinesa
flamulava orgulhosamente e, quando
soou a tradicional salva de dezenove
tiros, “passou ali perto uma van ver-
melha de entrega da Coca-Cola [...],
símbolo oportuno dos milhões de dó-
lares [...] que os empresários norte-a-
mericanos impacientes [esperavam]
abocanhar graças ao novo apetite da
China pelo comércio, pela tecnologia e
pelo crédito dos Estados Unidos”.^4
Na década de 1980, a China iniciou
uma liberalização limitada do merca-
do interno e uma abertura gradual ao
investimento internacional. Em 1986,
solicitou adesão ao Acordo Geral de
Tarifas e Comércio (Gatt), precursor
da OMC. Em seguida, no início dos
anos 1990, após o colapso da União
Soviética e três anos depois dos vio-
lentos acontecimentos de Tiananmen
(1989), Deng avançou. Ele ampliou a
reestruturação interna e acelerou a in-
ternacionalização e a integração do
país na economia mundial. O correla-
to geopolítico da integração econômi-
ca foi a acomodação com os Estados
Unidos para evitar confrontos que pu-
dessem comprometer a transição. Es-
sa escolha foi confirmada no Conse-
lho de Segurança das Nações Unidas,
no qual a China teve o cuidado de não
impedir a ação diplomática dos Esta-
dos Unidos.^5 Estes, por sua vez, procu-
raram inserir Pequim nas disciplinas
institucionais e comerciais da econo-
mia mundial ocidental, cujas regras e
restrições foram estabelecidas em
Washington (os Estados Unidos impu-
seram condições estritas para a ad-
missão da China na OMC, que se efeti-
vou em 11 de dezembro de 2001).
Partindo da premissa de que as liber-
dades econômicas e políticas estariam
necessariamente entrelaçadas, e agin-
do em uma posição de força, as elites
norte-americanas imaginaram ser ca-
pazes de moldar a trajetória chinesa
nesses dois níveis.

LIVRAR-SE DE TODAS AS REGRAS
Ao longo de sua abertura, a China se
tornou um destino cada vez mais im-
portante para o investimento estran-
geiro direto. Em dólares internacionais
correntes, as entradas líquidas foram
em média de US$ 2,2 bilhões por ano
entre 1984 e 1989, US$ 30,8 bilhões por
ano entre 1992 e 2000, e US$ 170 bi-
lhões por ano entre 2000 e 2013. Em-

China vs. EUA:


mais geopolítica,


menos comércio


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