Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

24 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019


bora a China procurasse utilizá-los pa-
ra adquirir tecnologias e know-how, a
maior parte dos investimentos foi ini-
cialmente dirigida para setores de bai-
xo valor agregado, como o têxtil, ou pa-
ra indústrias de transformação, como
a montagem de equipamentos elétri-
cos e eletrônicos com componentes
fabricados fora da China, por empre-
sas globais que detinham os direitos
de propriedade intelectual sobre os
produtos. Observadores críticos, como
Yasheng Huang, professor de Adminis-
tração Internacional da MIT Sloan
School of Management, notaram na
época que havia “pouca evidência de
que o influxo de investimento estran-
geiro direto na China incorporasse
muitas tecnologias pesadas ou leves
[...], [sendo] a lacuna tecnológica entre
os países investidores e a China geral-
mente percebidos após vinte anos”.^6
Os ganhos da China nas cadeias de va-
lor foram baixos, enquanto os das em-
presas transnacionais foram enormes
(ver boxe). A China parecia enredada
em estruturas de dependência.
A situação mudou a partir do final
dos anos 2000, e hoje é significativa-
mente diferente.^7 A apropriação tecno-
lógica, por meio de transferências
obrigatórias pelos investidores estran-
geiros, bem como a modernização in-
dustrial intersetorial realizada pelo Es-
tado permitiram que a China avançasse
constantemente em muitos setores in-
dustriais, capturando uma parcela
crescente do valor agregado. Esses
avanços e o peso econômico e político
do país da Ásia oriental começaram a
causar sérias preocupações em
Washington e outros governos ociden-
tais. Em 2011, Barack Obama anunciou
o “pivô” da política dos Estados Unidos
em relação à Ásia. Depois, em seu dis-
curso sobre o estado da União de 2015,
ele disse: “A China quer ditar as regras
para a região do mundo que teve o
mais rápido crescimento já registrado.
Por que a deixaríamos fazer isso? Nós é
que devemos ditar essas regras”.

Para frear a ascensão da China, o
atual governo dos Estados Unidos op-
tou por ir muito além, livrando-se de
todas as regras. Apoiado pelo Con-
gresso e pelo aparato de segurança
nacional, ele apresenta a China como
uma grande ameaça. Os Estados Uni-
dos veem nela um país enorme que fi-
cou rico demais, rápido demais – o
PIB per capita chinês passou de US$
194 em 1980 para US$ 9.174 em 2015
(em dólares de 2010). Eles veem um
Estado forte que incentivou e guiou o
desenvolvimento de conglomerados
industriais nacionais, sobretudo nas
telecomunicações, no transporte ma-
rítimo e nos trens de alta velocidade, e
que dedica uma parcela crescente do
PIB à pesquisa científica e técnica:
mais de 2% em 2016, contra 0,6% em
1996, quando o nível dos Estados Uni-
dos era de 2,74%, e o da França, de
2,25%. Eles veem um país que moder-
niza sua Marinha, comprometido com
uma fase de expansão econômica in-
ternacional por meio de suas novas
“rotas da seda” (Belt and Road Initiati-
ve, BRI), cujo componente marítimo
já permitiu a compra, a construção ou
a operação de 42 portos em 34 países.
Eles sabem que a China ainda tem um
grande atraso qualitativo em relação
aos Estados Unidos na maioria das
áreas técnicas sensíveis, mas estão
profundamente preocupados com o
fato de que, assim como o Japão nos
anos 1970 e início dos anos 1980, ela
está rapidamente chegando perto.
Como escreve o Financial Times,
Washington “está tentando ativamen-
te conter a ascensão da China”,^8 antes
que seus esforços de modernização
atinjam a maturidade. John Mearshei-
mer, um pesquisador realista de rela-
ções internacionais e ardente defen-
sor da contenção, argumenta que os
Estados Unidos devem fazer todo o
possível para impedir o ressurgimento
da China e para provocar a “retração
da economia chinesa”, antes que ela se
torne um “Hong Kong gigante”.^9 Para

isso, reduzem o acesso das importa-
ções de origem chinesas ao mercado
norte-americano (guerra comercial),
excluem as empresas chinesas dos se-
tores de alta tecnologia onde têm um
avanço qualitativo, contestam as rei-
vindicações territoriais de Pequim no
Mar da China Meridional, com o argu-
mento de que seu acesso às ilhas seria
uma “ameaça à economia global”^10 –
segundo Rex Tillerson, secretário de
Estado dos Estados Unidos entre feve-
reiro de 2017 e março de 2018 –, im-
põem controles rígidos para vistos de
estudantes estrangeiros e controles de
segurança para todos os estudantes de
pós-graduação chineses.
As agressivas medidas legais e re-
gulatórias tomadas por Washington
contra o conglomerado de telecomu-
nicações Huawei, o maior fornecedor
mundial de equipamentos de rede
sem fio, são os primeiros passos deci-
sivos nesse processo. O governo de-
fende uma proibição global da partici-
pação da Huawei na construção de
infraestrutura 5G, com resultados mo-
derados. Em 1º de dezembro de 2019,
o Canadá prendeu Meng Wanzhou a
pedido dos Estados Unidos. A diretora
financeira da Huawei é acusada de
fraude bancária e conspiração para
cometer fraude, por supostamente ter
violado as sanções norte-americanas
contra o Irã e roubado segredos co-
merciais, e trava uma batalha legal
contra sua extradição. Como observa
com preocupação o Financial Times
(20 maio 2019), “a decisão dos Estados
Unidos de colocar as principais em-
presas de telecomunicações da China
em sua lista de entidades com as quais
as companhias norte-americanas só
podem negociar se obtiverem uma li-
cença do governo marca um momen-
to crucial para a indústria global de
tecnologia. Ela é o golpe inicial de
uma guerra fria entre os Estados Uni-
dos e a China [...]. As últimas medidas
norte-americanas parecem concebi-
das com o objetivo de paralisar ou

destruir uma das principais empresas
de tecnologia chinesas que se torna-
ram competitivas em escala global
[...]. Trata-se de um esforço para disso-
ciar os setores de tecnologia dos Esta-
dos Unidos e da China, resultando em
uma bifurcação desse setor global”.

EMPRESAS “ANTIPATRIÓTICAS”
Os Estados Unidos querem, na verda-
de, desconstruir as cadeias de produ-
ção e de valor transnacionais, que in-
cluem cada vez mais a China e têm
sido uma das principais características
da globalização do final do século XX. A
guerra comercial impulsionada por
Washington dirige-se tanto contra as
corporações transnacionais que fize-
ram da China uma plataforma de mon-
tagem e produção como contra Pe-
quim. As autoridades de Washington
acreditam que “uma parte excessiva-
mente grande da cadeia de suprimen-
tos se deslocou em direção à China”^11 e
que as empresas multinacionais que
investiram nesse país, diretamente ou
por meio da construção de redes de
terceirização multiníveis, fazem parte
do problema. Elas consideram as ativi-
dades cosmopolitas de tais empresas
como antipatrióticas – argumento que
tem uma longa genealogia no pensa-
mento nacionalista. O professor de
Ciência Política Samuel Huntington,
conhecido por sua teoria do “choque
de civilizações”, formulou-o de manei-
ra sucinta em 1999, quando denunciou
“os liberais e os acadêmicos”, bem co-
mo as “elites econômicas” que se ali-
mentam de “sentimentos antinacio-
nais” e apoiam um “cosmopolitismo
[que erode] a unidade nacional” por
cima e por baixo. Ele clamava por um
“nacionalismo robusto” baseado em
uma trindade nacionalista: Deus, na-
ção e Forças Armadas.^12
A expectativa do governo, e tam-
bém dos altos funcionários do Partido
Democrata e do aparato de segurança,
é que um conflito comercial duradou-
ro associado a regimes restritivos de

@RIVA


@RIVA

Free download pdf