Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 25


segurança acarrete custos proibitivos
para as empresas transnacionais,
pressionando-as a desinvestir na Chi-
na e a interromper as transferências
de tecnologia e outras formas de coo-
peração comercial – como a venda de
chips para a Huawei pelas norte-ame-
ricanas Intel e Micron. Isso afeta as
empresas não norte-americanas, uma
vez que as leis e os regulamentos de
Washington têm alcance mundial:
elas se aplicam a todos os produtos ou
processos que incluem componentes
fabricados nos Estados Unidos ou de
direitos de propriedade intelectual in-
corporados. No futuro, poderão se
aplicar a todas as empresas que utili-
zam o dólar em suas transações, como
mostra o caso do atual bloqueio global
ao Irã decidido por Washington.
Os resultados não demoraram a
chegar: a Foxconn (Hon Hai Precision
Industry), companhia gigantesca de
origem taiwanesa que monta na Chi-
na os produtos da Apple e de outros
grandes nomes da eletrônica, anun-
ciou em abril de 2019 que planeja di-
versificar sua cadeia em direção à Ín-
dia e ao Vietnã (dois países rivais da
China) para se proteger contra futuras
interrupções nas cadeias de supri-
mentos asiáticas. Em fevereiro, 66 em-
presas taiwanesas começaram a repa-
triar sua produção da China
continental para Taiwan, apoiadas por
um programa de incentivos do gover-
no de Taipei.^13 Dezenas de empresas
norte-americanas e japonesas estão
desinvestindo na China e indo para o
México, a Índia e o Vietnã. Segundo
um estudo recente, das duzentas prin-
cipais companhias norte-americanas
ativas na China, 120 estão revisando
ou revisarão suas cadeias de supri-
mentos nos próximos meses.^14 O pro-
cesso se acelerará caso o governo in-
tensifique a guerra comercial.
Segundo o banco Morgan Stanley, o
custo do iPhone XS aumentaria em
US$ 160 se os Estados Unidos aplicas-
sem tarifas dissuasivas em todas as ex-
portações “chinesas”.^15
Os neomercantilistas norte-ameri-
canos esperam trazer parte das ca-
deias de fabricação de volta aos Esta-
dos Unidos, coisa que o governo pede
com insistência, até agora sem resul-
tados tangíveis. As corporações trans-
nacionais – principalmente, mas não
apenas, as empresas sem fábricas, co-
mo Apple e Nike – precisariam de for-
tes incentivos para isso. O desmante-
lamento de suas plataformas chinesas
seria um processo caro e difícil. Além
disso, a relocalização para os Estados
Unidos reduziria significativamente
suas margens de lucro. No entanto, a
vontade política parece firme. Ques-
tionado no canal CNBC no dia 10 de
junho de 2019, Trump denunciou a
Câmara de Comércio dos Estados
Unidos por seu apoio declarado à ma-

nutenção das relações comerciais
com a China e afirmou que estabele-
ceria uma tarifa de 25% para todas as
importações de origem chinesa (con-
tra cerca de metade das importações
atualmente sujeitas às novas tarifas)
se o país não respeitasse as exigências
dos Estados Unidos. Segundo ele, isso
obrigaria as empresas norte-america-
nas “a mudar para outro lugar [...].
Elas [irão] para o Vietnã ou para um
dos muitos outros países possíveis, ou
fabricarão seus produtos nos Estados
Unidos, o que é [minha opção] prefe-
rida”.^16 Nesse ponto, o presidente con-
ta com o apoio dos dirigentes do Parti-
do Democrata no Senado, cujo líder,
Chuck Schumer, exige uma posição de
grande firmeza em relação à China.^17
Assim, uma nova tensão se estabe-
lece entre as partes mais internaciona-
lizadas do capital e o Estado. Ao con-
trário da União Soviética, que estava
fora da economia capitalista mundial,
a China se tornou um componente es-
sencial dessa economia. O capitalis-
mo, utilmente redefinido por Fernand
Braudel como o “estágio superior” das
atividades econômicas, no qual o co-
mércio de longa distância gera os lu-
cros mais elevados, floresce no espaço
global, e não em mercados segmenta-
dos segundo as fronteiras nacionais.
Esse nível superior, que Braudel distin-
gue dos mercados locais situados no
“térreo”, requer uma economia mun-
dial aberta que o capital possa atraves-
sar sem entraves. Com algumas exce-
ções importantes, a exemplo do setor
da defesa e da indústria de hidrocar-
bonetos, estreitamente ligados ao Es-
tado, os elementos fundamentais do
capital têm alcance e interesses glo-
bais. Desse modo, a situação atual põe
em questão a hipótese liberal segundo
a qual o grau de interdependência al-
cançado no final do século XX teria in-
duzido a uma mudança de fase irre-
versível nas relações sociais mundiais.
Também põe em questão as perspecti-
vas neomarxistas que previam a emer-
gência de uma “classe dominante
transnacional”, transcendendo defini-
tivamente a política e o Estado.^18
Seria ingênuo pensar que a China
cederá à pressão. No dia 30 de maio, o
diário The Global Times, que geral-
mente reflete a linha oficial, escreveu:
“A China está pronta para uma batalha
comercial de longo prazo com os Esta-
dos Unidos. Comparada ao ano passa-
do, quando os Estados Unidos come-
çaram a guerra comercial, a opinião
pública chinesa é mais favorável a que
o governo tome contramedidas seve-
ras. Cada vez mais chineses acreditam
que o objetivo real de algumas das eli-
tes de Washington é arruinar as capa-
cidades de desenvolvimento da China
e que essas pessoas sequestraram a
política norte-americana relativa à
China”. Em ambos os lados, a busca

pelo poder parece vir antes da busca
pelo lucro. As interações entre o na-
cionalismo norte-americano e o na-
cionalismo chinês podem pôr fim à
globalização como a conhecemos.

*Philip S. Golub é professor de Relações
Internacionais da Universidade Americana
de Paris e autor de East Asia’s Reemergen-
ce [O ressurgimento do Leste Asiático], Po-
lity Press, Cambridge, 2016.

1 Donald Trump, “Declaring America’s economic
independence” [Declarando a independência
econômica da América], Discurso em Mones-
sen, Pensilvânia, 26 jun. 2016.
2 Declaração de Kiron Skinner, diretora de plane-
jamento político no Departamento de Estado,
durante colóquio da New America Foundation,
Washington, DC, 29 abr. 2019.
3 Stephen Walt, Taming American Power: The
Global Response to US Primacy [Domestican-
do o poder norte-americano: a resposta global
à primazia dos Estados Unidos], W. W. Norton,
Nova York, 2006.
4 Jonathan Steele, “America puts the flag out for
Deng” [América hasteia a bandeira para Deng],
The Guardian, Londres, 30 jan. 1979.
5 De 1971 a 2006, a República Popular da China
exerceu duas vezes seu direito de veto no Con-
selho de Segurança, contra 76 vezes para os
Estados Unidos, 24 vezes para o Reino Unido,
14 vezes para a França e 13 vezes para a União
Soviética (depois Federação Russa).
6 Yasheng Huang, “The role of foreign-invested
enterprises in the Chinese economy: An institu-
tional foundation approach” [O papel das em-
presas de investimento estrangeiro na econo-
mia chinesa: uma abordagem institucional]. In:
Shuxun Chen e Charles Wolf (orgs.), China, the
United States and the Global Economy [China,
Estados Unidos e a economia global], Rand,
Santa Monica, 2001.
7 Ler “Comment l’État chinois a su exploiter la
mondialisation” [Como o Estado chinês soube
explorar a globalização], Le Monde Diplomati-
que, dez. 2017.

8 “The US is seeking to constrain China’s rise”
[Estados Unidos tentam conter ascensão da
China], Financial Times, Londres, 20 maio
2019.
9 Citado por Zachary Keck, “US-China rivalry
more dangerous than Cold War?” [Seria a riva-
lidade entre China e Estados Unidos mais peri-
gosa do que a Guerra Fria?], The Diplomat,
Washington, DC, 28 jan. 2014.
10 Depoimento de Rex Tillerson em sua audiência
de confirmação no Senado dos Estados Uni-
dos, 11 jan. 2017.
11 Nazak Nikakhtar, secretária adjunta de Indústria
e Análise, Departamento de Comércio. Citada
por James Politi, “US trade hawk circles prey in
China conflict” [O voo dos gaviões do comércio
norte-americano sobre o conflito com a China],
Financial Times, Londres, 27 maio 2019.
12 Ler “Dieu, la nation et l’armée, une sainte trinité”
[Deus, nação e Exército, uma santíssima trinda-
de], Le Monde Diplomatique, jul. 2005.
13 Lawrence Chung, “Taiwanese companies hit by
US-China trade war lured back home by Taipei”
[Empresas taiwanesas atingidas pela guerra
comercial entre China e Estados Unidos são
chamadas de volta para casa por Taipei], South
China Morning Post, Hong Kong, 15 jun. 2019.
14 Taisei Hoyama, “US and Japan rethink supply
chains as trade war widens” [Estados Unidos e
Japão repensam cadeias de suprimentos à me-
dida que guerra comercial se amplia], Nikkei
Asian Review, Tóquio, 20 maio 2019.
15 Takeshi Kawanami e Takeshi Shiraishi,
“Trump’s latest China tariffs to shock global
supply chains” [As últimas tarifas de Trump
para a China, para abalar as cadeias globais
de suprimentos], Nikkei Asian Review, Tóquio,
12 maio 2019.
16 Entrevista de Donald Trump para Joe Kernen,
CNBC, 10 jun. 2019.
17 Keith Bradsher, “A China-US trade truce could
enshrine a global economic shift” [Trégua na
guerra comercial entre China e Estados Unidos
poderia ser valiosa para uma mudança econô-
mica global], The New York Times, 29 jun.
2019.
18 Cf. William I. Robinson e Jerry Harris, “Towards
a global ruling class? Globalization and the
transnational capitalist class” [Rumo a uma
classe dominante global? A globalização e a
classe capitalista transnacional], Science & So-
ciety, v.64, n.1, Nova York, primavera 2000.

CADEIAS GLOBAIS DE VALOR

A


partir do trabalho pioneiro de Gary Gereffi e Miguel Korzeniewicz,^1 a análise
das “cadeias globais de valor” tornou-se essencial para entender a globaliza-
ção. Ela ilumina a complexidade crescente das redes de produção transnacionais,
a mudança das geografias de produção e a captura diferencial do valor pelos
atores ao longo das cadeias (da concepção e da extração à produção dos com-
ponentes, montagem e comercialização do produto final). A literatura teórica e
empírica desenvolvida destacou a “nova integração funcional da economia mun-
dial” e o poder estruturante das empresas transnacionais na moldagem das eco-
nomias nacionais, como resultado da interação hierárquica entre elas e seus for-
necedores e subcontratados locais.
A utilidade dessa abordagem foi logo reconhecida por instituições internacionais
como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização para a Coo-
peração e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), pois permite avaliar de forma
mais precisa as balanças comerciais internacionais, distinguindo entre os conteú-
dos domésticos de uma exportação e seus conteúdos importados. As estatísticas
brutas de comércio são enganosas: quando o valor do conteúdo importado, in-
cluindo o valor dos direitos de propriedade intelectual embutido nos produtos, é
subtraído do valor total das exportações finais chinesas, o déficit bilateral dos
Estados Unidos cai consideravelmente (até 40% em alguns anos). O caso para-
digmático mais estudado é o dos produtos da Apple, cujos componentes (incluin-
do as matérias-primas) provêm de mais de duzentos fornecedores em dezenas
de países. A Apple, que faz o projeto e detém os direitos de propriedade intelec-
tual, captura quase metade do valor total do produto final, enquanto a montagem
na China não representa mais do que 2%.
Nesse caso, como em outros, a “guerra comercial” dos Estados Unidos afeta to-
das as empresas intermediárias em muitos países (Coreia do Sul, Taiwan, Malá-
sia, Japão etc.), pressionando-as a relocalizar suas plataformas até então insta-
ladas na China. (P.S.G.)

1 Gary Gereffi e Miguel Korzeniewicz, Commodity Chains and Global Capitalism [Cadeias
produtivas e capitalismo global], Praeger, Westport-Londres, 1994.

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