Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

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26 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019


REPRESSÃO DE OPOSITORES E DESENVOLVIMENTO ESTRATÉGICO, AS PRIORIDADES DE ERDOGAN


Após comprar mísseis russos e ensaiar uma reaproximação com Moscou,
Ancara encontra-se em crise aberta em relação aos Estados Unidos. Apesar
das tensões, uma saída da Turquia da Organização do Tratado do Atlântico
Norte (Otan), contudo, é muito pouco provável

POR DIDIER BILLION*

Turquia, um aliado


caprichoso, mas um


inimigo impossível


E


m 12 de julho, a Turquia recebeu
o primeiro lote de equipamen-
tos destinados ao sistema de de-
fesa antimísseis S-400, de fabri-
cação russa. Dando sequência a um
contrato celebrado entre Ancara e
Moscou em abril de 2017, essa entre-
ga, complementada por outras em
agosto e setembro, provocou signifi-
cativas tensões diplomáticas entre a
Turquia e os Estados Unidos. Para
Washington, o sistema S-400 seria in-
compatível com os equipamentos da
Organização do Tratado do Atlântico

Norte (Otan), da qual a Turquia é
membro desde 1952. Para pressionar
Ancara, o governo Trump argumen-
tou com a ameaça de suspensão das
vendas de caças F-35 para o Exército
turco. Isso foi suficiente para atiçar
os receios de uma saída da Turquia da
Otan e de uma deterioração de suas
relações com os Estados Unidos, já
prejudicadas pelas estratégias diver-
gentes de ambos na Síria.
Para entender a dinâmica da di-
plomacia turca, é preciso antes de tu-
do levar em conta uma de suas cons-

tantes, com frequência resumida
pela fórmula “síndrome de Sèvres”,
do nome do tratado assinado em 10
de agosto de 1920 sob a pressão dos
vencedores da Primeira Guerra Mun-
dial e que desmantelou o Império
Otomano. Sob essa expressão se es-
condem todas as ansiedades existen-
ciais nacionais. E, de fato, uma das
forças motrizes da política externa
turca é um nacionalismo sombrio.
No âmbito regional, a diplomacia de
Ancara permanece dominada pela
questão curda e pela obsessão em

impedir qualquer cristalização na
forma de um Estado, algo a que aspi-
ram os nacionalistas curdos para
além de sua diversidade.

“PROBLEMA ZERO
COM OS VIZINHOS”
O início dos anos 2000 viu uma tenta-
tiva de superação desses paradig-
mas, sob o impulso de Ahmet Davu-
toğlu, então ministro das Relações
Exteriores e conhecido por sua dou-
trina de “problema zero com os vizi-
n h o s”.^1 Embora essa iniciativa pu-
desse parecer tentadora, tendo em
mente as relações turbulentas que a
Turquia sempre manteve com seu es-
trangeiro próximo, ela marcava, no
entanto, um desejo genuíno de rom-
per com outro princípio básico da
política externa de Ancara durante
várias décadas: “O turco não tem
amigo, a não ser o turco”. Rapida-
mente, contudo, o conturbado am-
biente geopolítico do país, em parti-
cular os sobressaltos decorrentes da
guerra civil síria, tornou obsoletos
esses esforços e os fundamentos his-
tóricos ficaram de novo por cima.
Estreitamente ligada desde o final
da Segunda Guerra Mundial às po-
tências ocidentais, a Turquia nem
sempre foi um aliado fácil. Com os
Estados Unidos, as divergências sur-
giram em várias ocasiões. Assim,
após a invasão do norte de Chipre pe-
lo Exército turco, os norte-america-

© Jessica Leigh Nogueira

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