Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

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OUTUBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 27


nos decidiram por um embargo das
entregas de armas de fevereiro de
1975 a setembro de 1978. Da mesma
forma, em 2003, as relações bilaterais
conheceram sérias turbulências após
a recusa do Parlamento turco em
aderir ao pedido feito por George W.
Bush de deixar que passassem pela
Turquia cerca de 62 mil soldados
prontos para atacar o Iraque de Sad-
dam Hussein.
No entanto, o esforço da Turquia
para repensar suas relações com o
mundo exterior, onipresente desde a
década de 1960, nunca foi acompa-
nhado de uma renúncia a suas alian-
ças tradicionais. Três eventos recen-
tes provam isso: a concordância que
ela manifestou em relação à instala-
ção, em seu solo, do radar de alerta
precoce do escudo de defesa antimís-
seis da Otan, definido na cúpula de
Lisboa em novembro de 2010 e con-
firmado em setembro de 2011; a ins-
talação pela Otan, a pedido da pró-
pria Turquia, de mísseis Patriot (de
fabricação norte-americana) na fron-
teira turco-síria em janeiro de 2013; e
a reunião da Otan em nível de embai-
xadores solicitada por Ancara – e
imediatamente convocada pela orga-
nização transatlântica – alguns mi-
nutos após seu caça aéreo ter derru-
bado uma aeronave russa em 24 de
novembro de 2015.
Ainda que a manipulação nacio-
nalista de desacordos com os Estados
Unidos às vezes aumente as tensões,
a Turquia não pretende queimar pon-
tes, mas, consciente de seu potencial,
faz valer seus interesses de forma in-
tensa. É preciso lembrar que ela pos-
sui o segundo maior Exército da Otan
em número de soldados; que coloca à
disposição de seus aliados sua base
de Incirlik, onde estão armazenadas
armas nucleares; que ainda controla
os estreitos; e que representa o único
Estado da cultura muçulmana mem-
bro da Aliança Atlântica. Em poucas
palavras, ela é um hub eurasiático es-
sencial para a política regional
norte-americana.
Do ponto de vista ocidental, o pa-
pel central desempenhado por Anca-
ra de fato deve ser absolutamente
preservado. A confiança mútua foi
inegavelmente prejudicada pela de-
cisão turca de adquirir o sistema
S-400, mas a convergência de interes-
ses permanece forte. Por esse motivo,
a Turquia permanecerá na Otan,
mesmo que se comporte como um
causador de problemas, como o gene-
ral De Gaulle em seu tempo.
O dossiê dos mísseis S-400 russos
questiona essa análise? É verdade
que essas armas são incompatíveis
com as normas da organização atlân-
tica, na medida em que poderiam, se-
gundo Washington, ser colocadas em
rede com os sistemas de armamento

ocidentais que a Turquia possui e tor-
ná-las vulneráveis. No entanto, a Tur-
quia está plenamente consciente de
que nenhum país ou grupo de países
pode lhe fornecer garantias de segu-
rança equivalentes às da Otan. Os
numerosos contratos de armamento
em projeto ou em negociação com
potências ocidentais testemunham,
por um lado, a diversificação dos ei-
xos de sua diplomacia e, por outro,
sua determinação em fortalecer suas
próprias capacidades de defesa. De
fato, as unidades de mísseis Patriot
que permaneceram ativas na base de
Incirlik não são suficientes para co-
brir a totalidade de suas fronteiras a
leste e ao sul.

TENSÕES RECORRENTES
COM A RÚSSIA
O próprio Donald Trump minimizou
a responsabilidade dos turcos na
compra dos S-400. Segundo ele, a cul-
pa caberia a Barack Obama, a quem
acusa de ter impedido Ancara de ad-
quirir Patriots. Isso não impediu a to-
mada, assim que os primeiros ele-
mentos do S-400 foram entregues, de
medidas de retaliação que excluem a
Turquia do programa de aviões de
combate F-35: eliminação da linha de
produção, expulsão dos pilotos turcos
em treinamento, proibição para o país
de comprar aparelhos. Desafiando es-
sa posição, Jens Stoltenberg, secretá-
rio-geral da Otan, fez um veemente
apelo em favor de Ancara na abertura
do Aspen Security Forum, realizado
no Colorado em 17 de julho de 2019:
“O papel da Turquia na Otan vai muito
além dos F-35 ou dos S-400”.^2
E o que acontece com as relações
entre Ancara e Moscou? Se hoje elas
parecem seguir um curso harmonio-
so, os eventos dos últimos anos mos-
traram que estão permanentemente
em uma corda bamba. De fato, entre
a Rússia e a Turquia, nem a aliança
estratégica nem a ruptura total são
realmente possíveis.
O medo que às vezes se ouve falar
de uma aliança russo-turca que se
posicionaria contra o Ocidente se ba-
seia em uma percepção equivocada
do lugar e dos objetivos dos dois paí-
ses no cenário internacional. É certo
que muitos aspectos parecem aproxi-
má-los: o fato de serem classificados

regularmente no grupo dos “emer-
gentes”, a tendência a um exercício
autoritário e personalizado do poder,
as relações de enfrentamento com a
União Europeia (UE) e os Estados
Unidos, uma relação nostálgica com
um passado glorioso, enfim, um de-
sejo de afirmação no plano interna-
cional. No entanto, eles são dois ato-
res em categorias fundamentalmente
diferentes.
Enquanto a Rússia está recupe-
rando seu lugar no cenário mundial,
a Turquia nunca o encontrou de fato e
continua a buscá-lo. Essa assimetria
persistente leva a tensões recorrentes
entre as duas nações, as quais seus
interesses políticos e econômicos co-
muns não conseguem apagar. E o
próprio retorno da Rússia ao grupo
das grandes potências ocorreu, nos
últimos anos, à custa das ambições
da Turquia de se colocar como líder
regional. Por meio, sobretudo, de seu
envolvimento na crise síria, Moscou
mantém relações com todos os atores
da região e desempenha o papel cen-
tral que Ancara atribuíra a si mesma
sob a inf luência de Davutoglu. Além
disso, a impulsividade de Recep
Tay yip Erdogan e sua incapacidade
de definir uma perspectiva clara ex-
plicam, entre outras razões, o fato de
a Turquia não aparecer em posição de
força nas negociações sobre o dossiê
sírio, mesmo que nenhuma solução
para o conf lito seja possível sem ela.
De maneira mais geral, o próprio
conceito de aliança ou de parceria,
que induziria certo número de deve-
res e restrições políticas recíprocas,
não permite compreender a natureza
essencialmente pragmática da rela-
ção entre a Rússia e a Turquia. Não
devemos confundir a cooperação
ideológica, política e econômica, tor-
nada necessária pelo contexto geo-
político, com uma reaproximação es-
tratégica em uma lógica de bloco,
nem esquecer a constante reavalia-
ção de seus interesses por cada país.
O certo é que a Turquia não vê a Rús-
sia como inimigo ou ameaça, ao con-
trário de seus aliados ocidentais.
Nenhuma aliança estratégica,
portanto. Porém, o interesse mútuo
dos dois atores em cooperar torna
também improvável o cenário de uma
ruptura completa. Ainda que tensões,
mesmo confrontos diretos, permane-
çam possíveis, a Turquia continua
sendo um parceiro indispensável pa-
ra Vladimir Putin, se ele quiser alcan-
çar seus objetivos na Síria e realizar
suas ambições internacionais. O
Kremlin parece ter percebido isso,
deixando a Ancara alguma margem
de manobra no nordeste da Síria con-
tra os curdos, organizados no Partido
da União Democrática (PYD) ou na
região de Idlib, onde a Turquia con-
serva a inf luência junto a grupos re-

beldes. Por seu lado, Erdogan vê a
cooperação com a Rússia como uma
maneira de manter o controle sobre a
questão curda, que ele considera exis-
tencial para seu país. Embora rever-
sões táticas não possam ser excluídas,
fica claro aos olhos de Ancara que a
política de Moscou na região é muito
menos desestabilizadora para seus
interesses que a de Washington.
A curto prazo, a relação entre a
Rússia e a Turquia será em boa parte
determinada pelo rumo que o conf li-
to sírio tomar e pelas negociações pa-
ra sua resolução. Também se deverá
igualmente enxergar a questão atra-
vés do prisma das relações de cada
um dos dois países com a União Eu-
ropeia e os Estados Unidos.
Por fim, os desenvolvimentos da
política externa da Turquia decorrem
tanto de sua longa busca por identi-
dade, visível há cinco décadas, quan-
to de seu desejo mais recente de levar
em conta novos paradigmas que mol-
dam as relações internacionais. A
partir de agora, os valores que os paí-
ses ocidentais ainda consideram – de
forma mais ou menos confusa – co-
mo universais não são mais capazes
de se impor nem militarmente, nem
politicamente, nem culturalmente.
Para além de sua diversidade, as cha-
madas potências emergentes estão se
afirmando no cenário mundial e
abalam os antigos equilíbrios. A Tur-
quia é um exemplo dessa revolta no
mundo, e o presidente Erdogan ex-
pressa regularmente sua recusa de
uma ordem internacional regida pe-
los cinco membros do Conselho de
Segurança das Nações Unidas. “Faço
questão de repetir: o Conselho de Se-
gurança da ONU precisa ser reforma-
do para representar melhor o mundo
de hoje. É isso que quero dizer quan-
do explico que o mundo é maior que
c i n c o”,^3 declarou na sessão de encer-
ramento da 62ª Assembleia Parla-
mentar da Otan, em 21 de novembro
de 2016, em Istambul.
Os aliados tradicionais da Turquia
devem, portanto, aprender a distin-
guir o que tem a ver com a postura
conjuntural – muitas vezes motivada
por razões de política doméstica –
daquilo que poderia, hipoteticamen-
te, se tornar estruturante nos próxi-
mos anos.

*Didier Billion é diretor adjunto do Institut
de Relations Internationales et Stratégi-
ques (Iris), França.

1 Essa doutrina é explicada em seu livro Strate-
jik Derinlik [Profundidade estratégica], publi-
cado em 2001 na Turquia.
2 Jens Stoltenberg, “L’OTAN: un atout pour l’Eu-
rope, un atout pour l’UE” [A Otan: um ativo
para a Europa, um ativo para a União Euro-
peia], 17 jul. 2019. Disponível em: <www.
nato.int>.
3 Agência Anadolu, Istambul, 21 nov. 2016.

A Turquia está
plenamente consciente
de que nenhum país ou
grupo de países pode lhe
fornecer garantias de
segurança equivalentes
às da Otan

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