Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

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28 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019


NO CANADÁ, VENDER ARMAS SEM PESO NA CONSCIÊNCIA


P


ara os canadenses acostumados
com os hábitos tristes do con-
servador Stephen Harper, a vitó-
ria de Justin Trudeau, um jovem
cool e sorridente, nas eleições de outu-
bro de 2015 representou uma ruptura.
Enquanto o antigo primeiro-ministro
se recusava a evocar os “problemas
das mulheres”, como a desigualdade
salarial e a violência sexual, Trudeau
prometia fazer de seus filhos futuros
feministas convictos. Na contracor-
rente do cinismo dos conservadores
canadenses, o novato anunciava o
“futuro ensolarado” (sunny ways) de
uma política “positiva”. Sob seu caja-
do, o país deveria sair da sombra dos
Estados Unidos e retornar à cena polí-
tica internacional, como ele anuncia-
va na noite da vitória.
O discurso seduziu não apenas os
canadenses, mas também a mídia do
mundo inteiro, que apresentara Tru-
deau como o exato oposto de Donald
Trump, o antídoto para o nacionalis-
mo e o populismo que progrediam
tanto na Europa quanto nos Estados
Unidos. Trudeau primeiro pareceu
comprovar que estavam certos. As-
sim que assumiu o cargo, ele foi a

Londres, onde afirmou que a diversi-
dade constituía uma “força” para o
Canadá. Depois ele desenvolveu esse
tema diante dos membros do Fórum
Econômico Mundial de Davos, em ja-
neiro de 2016, proclamando que a di-
versidade era boa para os negócios,
antes de acrescentar: pagar às mulhe-
res tanto quanto aos homens “é bom”.
Na Conferência de Paris sobre mu-
danças climáticas (20 de novembro a
12 de dezembro de 2015), ele destacou
seu gosto pela ecologia, rompendo
com uma década de obstrução de seu
predecessor sobre o assunto. O Cana-
dá “está aqui para oferecer sua ajuda”,
lançou no auditório. Por fim, Trudeau
marcou sua diferença sobre a questão
da imigração. Enquanto os europeus
se dilaceravam a respeito da reparti-
ção dos migrantes sírios, ele apare-
ceu, em dezembro de 2015, no aero-
porto de Toronto, para acolher os
imigrantes que pediam asilo. “Aqui
vocês estão em casa”, garantiu.
Quatro anos depois, a estrela do
primeiro-ministro perdeu o brilho.
Seu balanço, muito distante das pro-
messas de campanha, suscita certo
ceticismo junto à população. Diver-

sos comentaristas, antes entusiastas,
ressaltam agora uma continuidade
com Harper, em particular na ques-
tão da política internacional.

“RETORNO DOS FALCÕES LIBERAIS”
Nessa matéria, Trudeau aparece an-
tes de mais nada como um adepto da
“exibição da virtude” (virtue signal-
ling), uma técnica de comunicação
que consiste em intervir abundante-
mente nas mídias, principalmente
nas redes sociais, a respeito de even-
tos que se beneficiam de uma ampla
cobertura, para defender valores po-
sitivos, sem que os atos se alinhem
sempre com as palavras. Dentro des-
sa mesma lógica, na desastrosa via-
gem à Índia, em fevereiro de 2018, o
jovem primeiro-ministro tinha julga-
do sensato vestir-se com um sári tra-
dicional, usado por uma parte da co-
munidade indiana no Canadá.
Sarcásticos, os comentaristas rapida-
mente interpretaram essa escolha in-
dumentária como uma mensagem
para sua base eleitoral, adepta da di-
versidade cultural. Os anfitriões in-
dianos apreciaram menos, e a via-
gem agravou ainda mais as relações
já tensas com a Índia.
No que compete ao feminismo, o
chefe do governo se orgulha de con-
duzir uma política de ajuda interna-
cional cujo eixo é o empoderamento
(empowerment) das mulheres por
meio da educação, da concessão de
microcréditos e da ajuda na criação de
empresas. No entanto, não apenas o
Canadá investiu pouco nessa área, co-
mo Trudeau estimou que os objetivos
da ajuda ao desenvolvimento fixada
há cinquenta anos pelas Nações Uni-
das (0,7% do PIB anual) eram “muito
ambiciosos”. Na prática, quase meta-
de dos valores que ele desbloqueou
vai alimentar fundos privados, encar-
regados, por sua vez, de aumentar os
capitais nos mercados. “O discurso do
Canadá sobre o desenvolvimento in-
ternacional [...] não é acompanhado
por um real engajamento financeiro”,
concluem os pesquisadores Matthew
Gouett e Bridget Steele.^1

É a mesma coisa no plano dos di-
reitos humanos. “Defenderemos
sempre os direitos humanos, defen-
deremos sempre os direitos das mu-
lheres, e isso não vai mudar”, certifi-
cava a ministra canadense das
Relações Internacionais, Chrystia
Freeland, em conversa com jornalis-
tas em 6 de agosto de 2018, no dia se-
guinte a uma controvérsia com a Ará-
bia Saudita a respeito do destino dos
militantes de direitos humanos no
país. A ministra tinha até mesmo
acolhido pessoalmente a jovem sau-
dita Rahaf Mohammed al-Qunun,
que havia fugido da monarquia, re-
forçando assim o verniz humanitário
e feminista do governo. No entanto,
alguns meses antes, o Canadá recu-
sou-se a anular um contrato de 15 bi-
lhões de dólares canadenses (R$ 47
bilhões) assinado com a Arábia Sau-
dita para a entrega de equipamentos
militares – equipamentos utilizados
na guerra com o Iêmen, país, inclusi-
ve, que recebe ajuda humanitária ca-
nadense. “É um pouco como ajudar
alguém a comprar muletas depois de
ter contribuído para quebrar suas
p e r n a s”,^2 ironiza Cesar Jaramillo,
responsável pelo Projeto Ploughsha-
res, uma organização ecumênica ca-
nadense que trabalha pela paz. “Em
uma democracia”, cada um deve
“respeitar os acordos assinados pelos
governos anteriores”, explicou o pri-
meiro-ministro como forma de se
justificar em uma conferência na
Universidade de Regina, em 11 de ja-
neiro de 2019.
A despeito de suas promessas,
Trudeau também perpetuou uma
tendência de seu predecessor: o ali-
nhamento com a política internacio-
nal de Washington. No encontro do
G20 organizado em Hamburgo, em
julho de 2017, ele surpreendeu a
chanceler alemã ao pedir que a de-
claração pelo meio ambiente se abs-
tivesse de mencionar o Acordo de Pa-
ris sobre o clima. A manobra foi
interpretada como uma tentativa de
amaciar Trump nas vésperas da re-
negociação do Acordo de Livre Co-
mércio Norte-Americano (Nafta) – o
que, no entanto, não foi suficiente.
Ainda que o novo texto (Acordo Esta-
dos Unidos-México-Canadá, AE-
UMC), assinado em novembro de
2018, contenha alguns avanços pro-
gressistas tímidos – por exemplo, so-
bre a mobilidade dos trabalhadores
ou o comércio dos remédios^3 –, ele
faz sobretudo importantes conces-
sões a Washington. Uma de suas
cláusulas concede aos Estados Uni-
dos um direito de veto sem prece-
dentes a respeito das futuras nego-
ciações comerciais entre o Canadá e
a China. Sem contar que Washington
se reserva a possibilidade de aplicar
importantes taxas de alfândega so-

Trudeau: exibição da virtude


como política externa


Para a grande mídia, a ambiguidade do primeiro-ministro surgiu quando foram reveladas
imagens suas com o corpo pintado de preto. O dirigente liberal não seria um defensor da
diversidade? Existe, contudo, outro campo, muito menos comentado, no qual o
gigantesco fosso entre discurso e prática se manifesta: a política externa

POR RICHARD NIMIJEAN E DAVID CARMENT*

Primeiro-ministros do Canadá, Justin Trudeau, após quatro anos de eleito, sua
estrela perdeu o brilho

U.S. Air Force/ Joshua R. M. Dewberry

@RIVA


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