Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 29


bre o alumínio e o aço em nome de
sua segurança nacional.
Enquanto esperava dinamizar
seu comércio com Pequim para ali-
viar sua dependência de Washington,
Ottawa então autossabotou seus pro-
jetos, em vez de enfrentar seu aliado.
Assim, em dezembro de 2018, o go-
verno canadense prendeu a diretora
financeira da empresa Huawei no ae-
roporto de Vancouver, a pedido de
seu homólogo norte-americano, que
a acusava de ter violado as sanções
decididas pela Casa Branca a respeito
do Irã. Uma das raras vozes canaden-
ses dissonantes neste caso, John Mc-
Callum, antigo embaixador do Cana-
dá na China, teve de se demitir por ter
sugerido, em um encontro com as
mídias canadenses e sino-canaden-
ses, que os Estados Unidos utiliza-
vam a extraterritorialidade como
uma arma.^4 Mesmo que Ottawa invo-
que o respeito de um tratado de ex-
tradição concluído com Washington,
as medidas de retaliação contra a
Huawei continuam sendo unilate-
rais, tomadas fora de qualquer reso-
lução do Conselho de Segurança da
ONU e sem acordo formal entre os
Estados Unidos e seus aliados. A Chi-
na respondeu prendendo dois cana-
denses, dando início a uma grave cri-
se diplomática e, por consequência,
ao afundamento da estratégia chine-
sa de Trudeau.
Segundo a revista The Economist,
que se situa entre os analistas mais
indulgentes em relação ao primeiro-
-ministro canadense, Ottawa se con-
tenta em adaptar os velhos princípios
do internacionalismo liberal à reali-
dade da administração Trump^5 – com
ainda menos margem de manobra,
pelo fato de que a atual crise do siste-
ma internacional cria um obstáculo
para as economias de médio porte,
como a do Canadá. As duas superpo-
tências, uma bem estabelecida (os
Estados Unidos), a outra emergente
(a China), dão a nota, enquanto as

forças em declínio, como a Rússia e a
União Europeia, penam para serem
ouvidas. Nesse contexto, as organiza-
ções multilaterais que Ottawa colo-
cou no coração de sua estratégia atin-
gem seus limites. A Organização
Mundial do Comércio (OMC) funcio-
na mal, o G7 está dividido, a Organi-
zação do Tratado do Atlântico Norte
(Otan) se desintegra. Além disso, tor-
na-se cada vez mais difícil enfrentar
desafios como o terrorismo, a cibers-
segurança, o etnonacionalismo e as
desigualdades socioeconômicas.
Alguns comentadores se mostram
menos indulgentes. Segundo eles, as
escolhas da equipe de Trudeau suge-
rem que, longe de sofrer a inf luência
de seu poderoso vizinho, ele concor-
da com sua visão. Enquanto o edito-
rialista do Toronto Star, Thomas Wal-
kom, evoca um “retorno dos falcões
liberais”, o ex-diplomata Daryl Cope-
land nota com inquietação: “A minis-
tra das Relações Internacionais, Free-
land [...], parece em boa parte cega
pelo hard power”.^6
Plebiscitada pelos think tanks nor-
te-americanos, bastante hostis a Pe-
quim e a Moscou, a ministra foi co-
roada diplomata do ano pelo Foreign
Policy Group. Por instigação sua, o go-
verno Trudeau colocou a Venezuela, a
Síria, a Rússia, o Irã e a Coreia do Nor-
te no topo de sua lista de prioridades,
imitando – e apoiando – as iniciativas
da administração Trump: encontros,
sanções, pressões políticas e emprego
militar.^7 Freeland descreveu o encon-
tro do Grupo de Lima sobre a Vene-
zuela, convocado precipitadamente
em Ottawa, em fevereiro de 2019, co-
mo um belo exemplo de diplomacia e
de acordo para o continente norte-a-
mericano, enquanto essa organização
se caracteriza por sua hostilidade ao
regime venezuelano e sua determina-
ção em derrubar o presidente Nicolás
Maduro. Freeland, inclusive, não jul-
gou necessário convidar para essa re-
união a Rússia e a China, principais

provedores de ajuda a Caracas. Mos-
cou e Pequim também não participa-
ram do encontro sobre a Coreia do
Norte, que o Canadá organizou em
2017, mesmo que os dois países façam
fronteira com Pyongyang.

DESVIAR A ATENÇÃO DOS ELEITORES
O governo de Trudeau parece assim
estimar que as crises que ameaçam o
planeta podem se resolver sem a Rús-
sia e a China. No entanto, Ottawa não
ganharia mais em iniciar conversas
com a primeira se pretende manter
uma voz no capítulo a respeito do Ár-
tico? E seus objetivos econômicos –
em particular sua aspiração a se li-
bertar de um vizinho espaçoso – não
convergiriam com os da segunda? Po-
rém, o diálogo aparentemente não
faz parte da ordem do dia. O Canadá
sempre se mostrou firme em relação
a Moscou na crise ucraniana. Quanto
a suas relações com Pequim, elas per-
manecem minadas pelo aprisiona-
mento de seus dois cidadãos, en-
quanto o conflito é exacerbado por
Trump e pelo ex-embaixador chinês
em Ottawa, Lu Shaye, que denuncia-
va em janeiro de 2019 o “egoísmo oci-
dental” e o “racismo” de seus interlo-
cutores. A isso se acrescenta um
princípio de escândalo político que
deteriora a pretendida superioridade
moral do Canadá em relação à China
e sua reputação de Estado de direito,
com o escritório do primeiro-minis-
tro sendo suspeito de ter tentado in-
terferir em um processo judiciário a
fim de ajudar a gigante empreiteira
canadense SNC-Lavalin, acusada de
corrupção.
Com as eleições que se aproximam,
o governo Trudeau redobra esforços
para exibir sua virtude e desviar a aten-
ção de seu balanço diplomático. En-
quanto liberais e conservadores estão
lado a lado nas intenções de votos, o
desabamento do New Democratic
Party (centro-esquerda) oferece mate-
maticamente uma vantagem aos pri-

meiros no sistema uninominal de tur-
no único canadense. Fortalecidos por
seus avanços nas pesquisas, os Verdes
são como elétrons livres. Os eleitores
de centro-esquerda e os jovens, que
elegeram Trudeau quatro anos atrás,
vão punir os liberais por suas promes-
sas quebradas, principalmente no pla-
no ambiental? Ou vão votar neles a
contragosto, com o único objetivo de
barrar os conservadores? A decisão do
Partido Liberal de não participar do
debate televisivo sobre a política exter-
na – essa mesma que contou tanto na
vitória de 2015 – sugere claramente
que ele teme ser colocado diante de
suas contradições e de seus fracassos,
pois, para além dos belos discursos, o
Canadá nem sempre teve lugar na ce-
na internacional.

*Richard Nimijean e David Carment são
professores, respectivamente, da Escola de
Estudos Nativos e Canadenses e da Nor-
man Paterson School of International Affairs,
Universidade Carleton, Ottawa (Canadá).
Ambos codirigiram Canada, Nation Branding
and Domestic Politics [Canadá, construção
da marca nacional e política doméstica],
Routledge, Abigdon (Reino Unido), 2019.

1 Matthew Gouett e Bridget Steele, “How Ca-
nada’s G7 summit fell short for women”
[Como a cúpula do G7 do Canadá ficou
aquém para as mulheres], Policy Options, 22
jun. 2018. Disponível em: <www.policyop-
tions.irpp.org>.
2 Citado em Brendan Kennedy e Michelle She-
phard, “Canada’s dual role in Yemen: Arms
exports to Saudi coalition dwarf aid sent to
war-torn country” [O duplo papel do Canadá
no Iêmen], The Star, Toronto, 30 abr. 2018.
3 Ler Lori Wallach, “Premières brèches dans la
forteresse du libre-échange” [Primeiras bre-
chas na fortaleza do livre-comércio], Le Mon-
de Diplomatique, nov. 2018.
4 Ler Jean-Michel Quatrepoint, “Au nom de la
loi... américaine” [Em nome da lei... norte-ame-
ricana], Le Monde Diplomatique, jan. 2017.
5 “Canada in the global jungle” [Canadá na selva
global], The Economist, Londres, 9 fev. 2019.
6 Citado pelo editorialista Thomas Walkom em
“The liberal hawk has made a comeback” [O fal-
cão liberal retornou], The Star, 28 jan. 2019.
7 Ler Alexander Main, “Géopolitique de la crise
vénézuélienne” [Geopolítica da crise vene-
zuelana], Le Monde Diplomatique, jul. 2019.

A fabricação do direito
Com base em um acesso sem precedentes
a discussões coletivas de juízes, Bruno
Latour reconstrói em
detalhes a tecelagem do

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Deveres e deleites
“Que profissão eu deveria colocar em meu
cartão de visitas?”, se pergunta Tzvetan
Todorov. Nesta série de
entrevistas concedidas
a Catherine Portevin, o
leitor terá a
oportunidade de
conhecer como o
próprio autor pensava
sua obra e avaliava os
elementos biográficos
que teriam contribuído
para suas escolhas
intelectuais.

O inconsciente
expli cado ao meu neto
Star Wars, Titanic, o imaginário de
contos e lendas, o sonho, o
comportamento dos animais: é
mergulhando no universo mental dos
adolescentes de hoje que a
reconhecida especialista francesa em
psicanálise e história, Élisabeth
Roudinesco, confere substância a
uma realidade que não vemos, mas
que, no entanto, determina nossos
modos de vida.

raciocínio jurídico:
claramente, os fatores
sociais, isoladamente,
não são suficientes para
explicar a lei.

@RIVA


@RIVA

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