Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 3


EDITORIAL


Ser oposição


POR SILVIO CACCIA BAVA

P


ara enfrentarmos o governo Bol-
sonaro, fazermos o debate pú-
blico sobre as reformas neolibe-
rais e os cortes nas políticas
sociais, denunciarmos a espoliação
dos trabalhadores e organizarmos a
resistência à destituição de direitos,
precisamos em primeiro lugar identi-
ficar o lugar de nossas falas.
Se durante mais de dez anos exer-
cemos a pressão e o diálogo com o go-
verno federal, e nos envolvemos na
discussão das políticas públicas e nos
mecanismos de gestão participativa,
agora a situação mudou. Se não há co-
mo influir no governo, não há por que
discutir programas de governo e polí-
ticas públicas.
O que temos pela frente é o desafio
de aprender novamente a ser oposi-
ção, debater e participar das mobiliza-
ções da sociedade civil que expressam
suas necessidades e demandas do dia
a dia. É a disputa pela qualidade de vi-
da que importa.
As pesquisas de opinião voltaram a
ter a saúde e a educação como os prin-
cipais problemas dos brasileiros e bra-
sileiras. O desemprego e os baixos sa-
lários estão também em destaque. A
segurança pública preocupa. Esses
são os principais problemas identifi-
cados na última pesquisa Datafolha,^1
e é com essas questões que temos de
lidar – denunciando, por exemplo, as
isenções tributárias dadas a setores da
indústria, do comércio e do agronegó-
cio, que em 2017 somaram R$ 270 bi-
lhões. O que não daria para fazer se

injetássemos R$ 40 bilhões no atendi-
mento do SUS e outro tanto na Educa-
ção? A crise das universidades públi-
cas e dos institutos técnicos federais
veio de um corte/contingenciamento
em seu orçamento que não chegou a
R$ 4 bilhões.
O momento político de destruição
da democracia e destituição de direi-
tos é global. Por toda parte os neolibe-
rais e a extrema direita atacam direi-
tos em nome do argumento de que as
políticas sociais não cabem no orça-
mento público. A estratégia é reduzir
os custos de reprodução da força de
trabalho, deixando maior margem
para os lucros.
Essa redução de custos envolve a
precarização das relações de trabalho,
o aumento da informalidade, o au-
mento do desemprego, o congelamen-
to dos salários, os cortes na Previdên-
cia e na Seguridade Social, a redução
dos gastos com saúde e educação, en-
tre outras políticas. Tais iniciativas são
escolhas, não são inevitáveis. Elas
aprofundam a espoliação de todos os
que vivem do próprio trabalho.
E há também formas de resistência
que surgem no cenário internacional
contra essa destituição de direitos.
Jeremy Corbyn, líder do Partido
Trabalhista inglês, cobra publicamen-
te dos conservadores que estão no go-
verno as vagas para as crianças nas es-
colas públicas e onde foram parar os
recursos destinados à educação.
Bernie Sanders, senador democra-
ta nos Estados Unidos e pré-candida-

to à presidência desse país, criou um
movimento na sociedade civil chama-
do Nossa Revolução (Our Revolution),
que em três anos já organizou mais de
seiscentos comitês locais por todo o
território norte-americano e tem co-
mo plataforma política dobrar o salá-
rio mínimo e oferecer ensino e saúde
públicos e gratuitos a todos.
Jean-Luc Mélenchon, líder do mo-
vimento França Insubmissa, se pro-
põe a enfrentar a desigualdade, taxar
fortemente os ricos e as finanças, au-
mentar os gastos em políticas sociais
e ampliar os direitos dos trabalhado-
res, o que inclui o aumento do salário
mínimo para 1.700 euros. No campo
dos valores, defende o direito ao abor-
to e ao casamento entre pessoas do
mesmo sexo. Na questão das mudan-
ças climáticas, propõe que a França
passe a ser protagonista na defesa do
meio ambiente.
Esses líderes da resistência cidadã
à voracidade das grandes empresas
têm uma linguagem comum: eles
apresentam soluções para os proble-
mas cotidianos das maiorias. Propos-
tas bem concretas, que todo mundo
entende. E vão ganhando cada vez
mais espaço na cena pública.
Se quisermos aprender com essas
experiências exitosas de ser oposi-
ção, de mobilização em defesa de di-
reitos, temos de mudar nosso discur-
so, sair da posição de sugerir novas
políticas, novos programas de gover-
no, e ganhar o espaço público, pro-
mover manifestações nas ruas, de-

bates públicos, apoiar aqueles que
apresentam suas demandas, promo-
ver uma maior articulação entre os
inúmeros grupos formais e infor-
mais que vão se criando para reagir e
defender seus direitos.
As possibilidades começam a ser
discutidas: promover campanhas
com o pedido de impeachment de
ministros; judicializar a política para
travar projetos de destituição de di-
reitos no Congresso; cobrar a inde-
pendência e o respeito à Constituição
de poderes como o Congresso, o STF,
o TSE e o Exército; pressionar jornais
e instituições empresariais a se posi-
cionarem; abrir diálogo com os seto-
res conservadores, com as igrejas, so-
bre uma agenda de direitos que
garanta um mínimo de qualidade de
vida, sobre meio ambiente, sobre se-
gurança pública.
As oposições têm o desafio de en-
frentar as eleições municipais do ano
que vem. A questão do desenvolvi-
mento no território, dos circuitos cur-
tos de produção e consumo, passa a
ser central se quisermos nos somar
aos descontentes. Precisamos assumir
como bandeiras eleitorais a solução
dos problemas concretos locais que
expressem as demandas e necessida-
des dos trabalhadores do município.

1 “Datafolha aponta que 18% dos brasileiros consi-
deram saúde como principal problema no país,
15% dos entrevistados estão mais preocupados
com educação, e outros 15% com o desempre-
go”, G1, 5 set. 2019.

© Claudius

@RIVA


@RIVA

Free download pdf