Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

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30 Le Monde Diplomatique Brasil^ OU T U BRO 2019


UTOPIA DAS ELITES REFORMISTAS, PESADELO DE PROFISSIONAIS E PACIENTES


O hospital


do futuro


C


hamonix, 1º de outubro de


  1. É um lindo dia. Como to-
    do ano, a fina f lor dos tomado-
    res de decisão no campo da
    saúde se reúne para a Cham. A Cham
    é a Convention on Health Analysis
    and Management (Convenção sobre
    Administração e Análise da Saúde),
    uma festinha onde, sob a liderança
    de Guy Vallancien, ex-assessor de
    Saúde de Nicolas Sarkozy e professor
    de Urologia do Institut Mutualiste
    Montsouris, discute-se o futuro do
    sistema de saúde.
    O dispositivo cênico do centro de
    convenções lembra uma academia de
    boxe. No meio, o palco retangular pa-
    rece um ringue, iluminado por pode-
    rosos holofotes; ao redor, assentos
    confortáveis oferecidos à plateia. Mas
    a comparação para por aí. Basta ou-
    vir, por exemplo, a conversa entre Luc
    Ferry, ex-ministro da Educação que se
    tornou um arauto do transumanis-
    mo, e o escritor Erik Orsenna, que
    mais parece um bate-papo durante
    um jantar, misturando considerações
    filosóficas estratosféricas e piadas re-
    servadas aos happy few, para enten-
    der que de combate, e mesmo debate,
    ali não haverá nada. De fato, todo esse
    mundinho concorda em quase tudo.
    As raras questões que são colocadas
    vêm do mestre de cerimônia que co-
    manda a mesa – intervenções do pú-
    blico não são permitidas –, normal-
    mente para convidar os palestrantes
    a aprofundar pontos a respeito dos
    quais o governo ainda ousa apresen-
    tar resistência. De resto, o que real-
    mente importa não acontece ali, mas


em torno do buffet ou nos restauran-
tes chiques da região. É lá que, em pe-
quenos grupos, empresários da saúde
e instâncias organizadoras defendem
junto aos tomadores de decisão públi-
cos suas soluções para resolver a eter-
na “crise do sistema de saúde”.
Na pista de esqui da burguesia, o
“buraco da Seguridade Social” não é
uma preocupação. O aumento dos
gastos com saúde não é um proble-
ma, desde que não sejam gastos pú-
blicos – os da Seguridade Social.
Aqui, a saúde é vista como um merca-
do promissor, até como um impor-
tante ativo econômico da França. A
medicina francesa é uma das melho-
res do mundo e deve trabalhar não
apenas para manter sua classifica-
ção, mas também para conquistar fa-
tias de mercado no exterior. A tecno-
filia une essas elites, que já não
sabemos mais se são públicas ou pri-
vadas, de direita ou de esquerda. O
único partido mencionado é o da
Inovação, com “I” maiúsculo.
Entre um canapé e outro, sempre
regados a champanhe, expressa-se a
preocupação com o atraso europeu
na área da inteligência artificial, em
comparação com a China e os Esta-
dos Unidos, dois gigantes. Felizmen-
te, neste ano pré-eleitoral, podemos
ter esperanças: o então ex-ministro
da Economia candidato à eleição pre-
sidencial, Emmanuel Macron, encer-
ra o evento, mais uma vez.^1 Seu dis-
curso de representante da “start-up
nation” deixa o público muito à von-
tade. Graças à telemedicina, ao big
data, à inteligência artificial, à medi-

cina 3P (preditiva, preventiva, perso-
nalizada), a França resolverá todos os
problemas crônicos de seu sistema de
saúde, além de se tornar um líder
mundial da economia do setor. “Du-
plos dividendos”, diriam os membros
da Inspection Générale des Finances
[Inspetoria Geral das Finanças], da
qual vem Macron.
No entanto, o otimismo tecnóla-
tra dos picos alpinos tem dificulda-
des para descer até o vale dos profis-
sionais de campo (que não foram
convidados para a Cham, evidente-
mente). Estes enfrentam todos os
dias as injunções paradoxais geradas
por uma restrição orçamentária in-
sustentável, pressionada pelo impe-
rativo de qualidade e segurança do
atendimento: fazer cada vez melhor e
mais rapidamente, com recursos hu-
manos e materiais que não acompa-
nham a demanda, e até diminuem,
em algumas instituições.
Os anos 2000 marcam uma virada
neoliberal nas políticas hospitalares,
enquanto a medicina ambulatorial
goza de uma empatia surpreendente
por parte do governo. Para as autori-
dades públicas, se é preciso economi-
zar, o “hospitalocentrismo” deve dar
sua contribuição. Portanto, tesoura
no orçamento hospitalar e, para a me-
dicina ambulatorial, o passe de mági-
ca dos incentivos financeiros e das

reorganizações voluntárias. Os hos-
pitais são instados a se concentrar em
sua “atividade core” – os atendimen-
tos altamente especializados, técni-
cos e caros, bem como as missões do
serviço público – e dar o restante –
rentável – de presente para os demais
atores da cadeia de atendimentos, em
sua grande maioria privados (médi-
cos particulares, clínicas privadas...).
Codinome dessa vasta operação:
“virada ambulatorial”. São utilizadas
duas ferramentas para forçar os pro-
fissionais hospitalares relutantes a ne-
gociar: arrocho orçamentário e con-
corrência entre as instituições, por
meio da “tarifação da atividade”, mais
conhecida pela sigla T2A. Em teoria,
esses dois instrumentos não são com-
patíveis.^2 De fato, por causa da T2A, a
Seguridade Social não remunera mais
as estruturas, e sim o volume e a natu-
reza dos atos praticados pelos estabe-
lecimentos de saúde. “O dinheiro se-
gue o paciente”, como dizia o slogan
thatcheriano do final dos anos 1980, e
o hospital se torna uma empresa ins-
tada a aumentar sua participação no
mercado local de assistência médica
(e até mesmo no mercado internacio-
nal, no caso dos prestigiados estabele-
cimentos da Assistência Pública –
Hospitais de Paris, AP-HP). Mais
atividade significa mais receita, mais
pessoal e mais investimento.

“Vento” – foi assim que os médicos em greve classificaram
a proposta apresentada pela ministra da Saúde francesa
em 9 de setembro. A um serviço à beira da implosão, ela
oferece um pacote raquítico, apoiado em outros setores,
também em dificuldades. Devemos falar de “crise” do
hospital ou de “roubo” – um projeto para entregar uma
instituição ao setor privado?

POR FRÉDÉRIC PIERRU*

® Suzana Lefèvre

@RIVA


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