Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 147 (2019-10)

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OUTUBRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 31


No entanto, como essa concorrên-
cia se dá em um quadro orçamentá-
rio de cada vez mais restrição, o fi-
nanciamento se torna muito
perverso. Antes de mais nada, cada
instituição tem interesse em maxi-
mizar sua atividade, inclusive trapa-
ceando: fatia-se uma estadia em vá-
rias, “otimiza-se” sua codificação
graças às habilidades de empresas
privadas que não estão sujeitas ao si-
gilo médico – como denunciou, à cus-
ta de seu afastamento, Jean-Jacques
Tanquerel, diretor de informações
médicas do centro hospitalar de
Sa i nt-Ma lo.^3 Em suma, com a T2A es-
tamos no universo do plano de negó-
cios, não no do serviço público.
Como é preciso manter o orça-
mento geral, porém, o governo decide
unilateralmente baixar tarifas quan-
do o conjunto da atividade aumenta.
Assim, a T2A transforma os hospitais
em hamsters: eles são condenados a
girar a roda cada vez mais rápido,
sem que isso ajude a melhorar sua si-
tuação financeira, pelo contrário. De
fato, a produtividade dos serviços
hospitalares aumentou significativa-
mente (o volume de atendimentos
prestados cresceu 3% ao ano até 2010
e 2% ao ano a partir de 2015). Em
campo, isso corresponde a uma in-
tensificação maciça do trabalho e
não impede a degradação da qualida-
de do atendimento: espera mais lon-
ga, crescimento do número de pa-
cientes que retornam ao hospital
após serem atendidos pela primeira
vez, fuga de pacientes para médicos
particulares ou clínicas privadas etc.
Além disso, embora a taxa de ob-
solescência e de envelhecimento das
instalações seja alta, os hospitais ou
deixaram de investir, ou passaram a
recorrer a expedientes desastrosos
para suas finanças a longo prazo:
empréstimos tóxicos (falamos aqui
de empréstimos “estruturados”, ou
seja, de taxas variáveis, muito atraen-
tes quando foram contratados, mas
que explodiram com a alta do franco
suíço), parcerias público-privadas,
contratos caros de aluguel/manuten-
ção de equipamentos de grande por-
te e de imagem (ressonância magné-
tica, PET scan)...

SACROSSANTA
LIBERDADE DE INSTALAÇÃO
Outro fator agravante: o ambiente
dos estabelecimentos de saúde não
está em absoluto preparado para a
transferência de atividades envolvi-
das na virada ambulatorial. A mon-
tante, a velha medicina liberal, cujos
princípios foram definidos em 1927
diante dos primeiros projetos de se-
guro social, encontra-se em um
avançado estado de decadência. Não
apenas o número de médicos gene-
ralistas diminui, como eles tendem a

reduzir seu tempo de trabalho. Em-
bora a França tenha descoberto os
“desertos médicos” no século X XI, as
desigualdades de densidade médica
no país sempre foram elevadas, em
decorrência do reinado da sacros-
santa liberdade de instalação. Na se-
quência dos movimentos de Maio de
68, essas desigualdades foram mas-
caradas pela formação de um grande
número de médicos. Na década de
1990, os sindicatos de médicos libe-
rais preocupavam-se com esse “ex-
cesso”, exigindo o fortalecimento do
numerus clausus.^4 Com a aposenta-
doria dessas numerosas fileiras, es-
sas entidades começaram a denun-
ciar a escassez que elas mesmas
ajudaram a produzir, de mãos dadas
com o Ministério das Finanças. Re-
sultado: o número de atos por habi-
tante praticados por médicos gene-
ralistas reduziu 15% entre 2000 e
2013,^5 uma queda ainda mais notável
pelo fato de que a população está em
processo de envelhecimento e de
que certas patologias se tornaram
crônicas, logo a demanda geral por
atendimento tende a aumentar. Isso
significa que as desigualdades terri-
toriais de acesso à assistência se
aprofundaram.

Com uma correlação de forças fa-
vorável, os sindicatos médicos domi-
nantes chegam a se perguntar se não
deveriam voltar atrás na única con-
cessão feita à Seguridade Social em
1971: a renúncia à liberdade de fixar
eles mesmos seus honorários, na es-
perança de acessar uma clientela
maior e, além disso, mais solvável,
graças ao reembolso pela Seguridade
Social de 80% do custo do atendimen-
to recebido. Uma cisão já foi estabele-
cida em 1979 com a criação do setor 2
de honorários livres, definidos pelos
próprios médicos. Agora, o objetivo é
explodir o setor 1, chamado de con-
vencionado, no qual os médicos de-
vem respeitar as tarifas negociadas
por seus representantes pela Seguri-
dade Social. A prática de exceder os
honorários se banaliza e, para os pa-
cientes, os obstáculos financeiros so-
mam-se aos obstáculos territoriais.
Resultado: quando precisa de atendi-
mento de saúde, a França dos coletes
amarelos tende a recorrer aos hospi-
tais, especialmente aos serviços de
emergência. A essa conclusão já som-
bria, deve-se acrescentar a profunda

crise atravessada pela psiquiatria pú-
blica, que enfrenta uma crônica falta
de recursos humanos e materiais, co-
mo trouxeram a público as recentes
mobilizações em algumas institui-
ções (Amiens, Saint-Étienne-du-Rou-
vray). Essa falha também alimenta a
busca pelas emergências hospitalares
por parte dos pacientes que sofrem de
transtornos psíquicos.

A jusante dos estabelecimentos
hospitalares, o setor médico-social
viu suas competências compartilha-
das entre o Estado e os conselhos de-
partamentais financeiramente inca-
pazes de lidar com o aumento da
pobreza e da precariedade. E também
o desafio de uma população idosa de-
pendente, em relação à qual cada um
desses dois campos – o médico e o so-
cial – tenta se desvencilhar do outro.
A crise que abala os lares para idosos
dependentes (chamados na França
de établissements d’hébergement pour
personnes âgées dépendantes – Ehpad)
há alguns anos revelou seu estado de
degradação e a frequência de casos
de maus-tratos.^6 Com financiamento
e pessoal médico insuficientes, esses
estabelecimentos logo passaram a
enviar para os serviços de emergên-
cia os idosos cuja saúde esteja se dete-
riorando. No caso dos que permane-
cem em casa, são suas famílias,
chamadas de “cuidadoras”, que so-
frem em cheio a incapacidade de os
hospitais acomodarem pacientes ido-
sos, à custa de dificuldades econômi-
cas e, muitas vezes, de dores morais
insuportáveis.
Ausência de um verdadeiro servi-
ço de saúde pública a montante, qua-
se falência médico-social a jusante:
essas são as causas reais da “crise dos
serviços de emergência”. A isso se so-
ma o fato de que os serviços de emer-
gência ocupam uma posição relativa-
mente rebaixada nos hospitais. Como
cuidam de casos considerados “im-
puros”, que misturam questões mé-
dicas, psicológicas e sociais (sem-te-
to, idosos, pacientes psiquiátricos em
crise etc.), os médicos generalistas
que atendem ali são frequentemente
olhados de cima pelos serviços espe-
cializados, que só aparecem para es-
colher o melhor produto (em outras
palavras, para encontrar “bons ca-
sos”, aqueles que se encaixam perfei-
tamente na nosologia médica e que
sabemos que não ocuparão um leito
por muito tempo).

Isso está mudando, porém lenta-
mente. Agora, os médicos de hospitais
universitários podem dirigir serviços
de emergência; a medicina de emer-
gência foi reconhecida como especia-
lidade no final de 2015; e em 2017 foi
criado o diploma de especialista cor-
respondente. Além disso, parte da co-
munidade de médicos hospitalares
apoiou os grevistas – um pouco tarde,
deve-se dizer –, como Bruno Riou, rei-
tor da Faculdade de Medicina Pierre e
Marie Curie, em Paris; André Grimal-
di, professor de Diabetologia; e Anne
Gervais, presidenta adjunta da Com-
mission Médicale d’Établissement de
l’AP-HP (Comissão Médica de Estabe-
lecimento da AP-HP).^7
As clínicas, por sua vez, especiali-
zam-se nos nichos mais rentáveis da
T2A, ou seja, atendimentos progra-
máveis, técnicos e especializados (ci-
rurgia de quadril, catarata etc.). As-
sim, o mercado de atendimento
criado pelo poder público obedece à
regra clássica: socialização das per-
das e privatização dos lucros.
A crise dos serviços de emergência
é, portanto, uma crise sistêmica, sin-
toma dos males de nossa organização
de saúde e dos erros do passado: ob-
solescência, pior manejo de doenças
crônicas do que de doenças agudas,
reformas hospitalares com muitos
efeitos perversos, ausência crônica
de reformas (ou “não decisões”, como
dizem os políticos) no setor da medi-
cina ambulatorial...^8
A esse respeito, a presidência de
Macron marca uma virada simbólica,
uma vez que a ministra da Saúde, Ag-
nès Buzyn, ela própria médica hospi-
talar, observou publicamente a in-
competência das autoridades
públicas nos últimos vinte anos. Ela
declarou que é necessário acabar com
a ideologia do “hospital-empresa” e
do “tudo-T2A”, que se tornou a res-
posta para todos os problemas da po-
lítica hospitalar.^9 O próprio presiden-
te da República admitiu, em entrevista
na televisão para dois jornalistas, que
as causas da crise hospitalar deve-
riam ser buscadas fora do hospital: tal
crise requer na verdade “uma respos-
ta [em termos] de reorganização de
nossos serviços [...] e do que se passa
entre o que chamamos de medicina
ambulatorial e os hospitais, para evi-
tar que todo mundo procure os servi-
ços de emergência”.^10

NASCIMENTO DOS “HOSPITÉIS”
Essas palavras soaram como uma ne-
gação política dos tomadores de deci-
são e especialistas que insistem em
falar das espessas camadas de ganhos
de produtividade escondidas sob a
gordura do corporativismo e da “re-
sistência à mudança” – escancarando
as portas do hospital para as empre-
sas de consultoria, com seu lean ma-

Deixam que a ministra
jogue iscas e, às escondi-
das, comprimem a oferta
pública de atendimento,
para o grande benefício
dos atores privados

Isso cria um
incentivo perverso
para que sejam feitas
cirurgias mesmo
quando não é necessário

@RIVA


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